sexta-feira, maio 02, 2008

A Miséria da Casa da Tripa - Capítulo III, 1.ª parte


O azul do céu, pontuado apenas por inofensivas e rendadas nuvens, inspirava tranquilidade, bonança, império e real seguros. O chilrear dos pássaros madrugadores era o único som que cortava a quietude dos Novelões. Uma chilreada que arrancara, às asas de Morfeu, Doroteia.
Ao longe, o pó anunciava visitas.
O característico e incessante batucar na imponente porta da Casa dos Novelões, não escondia a identidade do visitante. Genoveva precipitou-se para a entrada na esperança de poder salvar o que pudesse ainda sobrar do sobro da porta.
Os Barcarena eram fidalgos distintíssimos, de ancestral linhagem mas cada vez mais magra comedoria. Ocuparam os mais relevantes lugares que a Coroa, sempre com parcimónia, distribuía aos seus mais dilectos servidores. Tinham sido capitães donatários de diversas possessões, vice-reis e ministros. A elevação ao marquesado foi graça de D. Afonso VI que, apesar dos pesares, D. Pedro II respeitou. Estando recolhido (era a palavra oficial com que se baptizava o encarceramento d’El-Rei) em Sintra, o único contacto que o real Senhor mantinha era o que os pombos dos Barcarena possibilitavam. Numa dessas trocas de correspondência, prometeu-lhe o sexto Conde de Barcarena aproveitar a noite de lua nova para dar uso à escada, de grandes dimensões, que havia sido construída no mais guardado segredo para devolver a liberdade que ao soberano o mano tirara. Em resposta, D. Afonso, por causa da escada, e da elevação que ela permitia, decidiu elevá-lo a Marquês. No dia, ou melhor, na noite aprazada, lá foram os lacaios do novel Marquês, pé ante pé, camuflados como se estivessem no BBC Vida Selvagem de David Attenborough, com um escadão às costas. Assim que chegaram às imediações do Paço, logo as sentinelas deram o alerta, desconfiados dos sete arbustos, viçosos, que se locomoviam, sem vento, com uma escada enorme pousada nas suas copas. D. Pedro II perdoou ao Barcarena quando este, na certeza de que o título lhe seria reconhecido, fez degolar os pombos que perturbavam o repouso do Senhor D. Afonso e, mais irritante ainda, cagavam o patim do Palácio da Vila, tornando perigosamente escorregadio o percurso de D. Pedro, quando, pela calada, se furtava aos deveres conjugais, nos braços das aldeãs das redondezas.
- Pegas, podemos tê-las! – dizia amiúde o Bispo Confessor D’El Rei D. Pedro – Não podemos é trazê-las para casa! – E assim procedia obedientemente o soberano, não sem antes entoar, antes de cada escapadela, o magoado acto de contrição que o redimia. – Quem não proceder desta maneira, arranjará problemas … – profetizava o probo prelado – … até, quem sabe, com a justiça do Porto!

O cocheiro do Marquês de Barcarena, de libré um pouco gasta mas de abotoadura de prata polidíssima ostentando as armas da Família, mantinha-se na sua função, reproduzindo o ininterrupto bater característico dos Senhores da sua Casa.

Assim que Genoveva abriu a porta, e mesmo antes de ela pronunciar qualquer palavra, logo o lacaio gritou:
- O Senhor Marquês de Barcarena, D. José Maria do Santo Espírito e do Santíssimo Sepulcro de Nosso Senhor Jesus o Cristo Salvador do Mundo e das Sete Espadas de Nossa Senhora das Dores e do Santo Lenho de Athouguia e Mascarenhas Telo de Menezes da Câmara de Lisboa e Castro...
- E o Lancastre? Quere-lo para ti? – Resmungou o Marquês.
- Queira desculpar, meu Senhor – disse em voz mais sumida, para logo voltar a gritar, agora mais alto ainda:
- O Senhor Marquês de Barcarena, D. José Maria do Santo Espírito e do Santíssimo Sepulcro de Nosso Senhor Jesus o Cristo Salvador do Mundo e das Sete Espadas de Nossa Senhora das Dores e do Santo Lenho de Athouguia e Mascarenhas Lancastre – disse mais fortemente ainda - Telo de Menezes da Câmara de Lisboa e… - fez uma pausa de respiração - … Castro … Só depois de ter visto, pelo canto do olho, o menear afirmativo de seu amo, o cocheiro prosseguiu - … para a Senhora Dona Doroteia.
A criada, atónita, nada disse. Empanicada, disparou em corrida, vencendo a distância que a separava do quarto de D. Genoveva, galgando os obstáculos que havia.
- Minha Senhora, minha Senhora. É um senhor da Câmara de Lisboa.
- Eu sei quem é, obrigada. Manda entrar mas não ofereças nada.
Voltando à porta, onde estava o Marquês especado com certa indignação, a rapariga lá disse:
- A Senhora manda que os senhores entrem …
- Só entro eu, sua tonta – disse o Marquês, abrindo caminho.
- … e espero que não queiram nada … que nada vos posso oferecer.



Isílio Verdasca

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Primo dos Almeida da Câmara, presumo!

5/05/2008 2:31 da tarde  

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