segunda-feira, abril 14, 2008

Contra o facilitismo do divórcio

por Matilde Sousa Franco

Pedi superiormente autorização para votar, na Assembleia da República,
contra o Projecto de Lei nº 485/X do Bloco de Esquerda que «Cria o
Regime Jurídico do divórcio a pedido de um dos cônjuges». Tendo sido a única
deputada do PS a votar contra, julgo dever explicar melhor a minha posição,
através desta Declaração de Voto.
---
Os deputados do BE vêm insistindo há anos no divórcio unilateral. Em Maio de
2007, como lembram agora no Projecto de Lei acima referido, «não faltaram
acusações ao Bloco de Esquerda – que queria liberalizar o casamento ou mesmo
acabar com ele, que propunha «o divórcio na hora». Afirmaram eles também,
por exemplo, que se trata «da mais importante proposta de modernização do
direito de família desde 1975».

Entretanto, foi criada na Assembleia da República, com a reforma do
Parlamento, a Subcomissão da Igualdade de Oportunidades e Família, à qual
pertenço, e estranho este assunto não ter sido aí presente.

1 – Divórcio como prémio para o infractor

Por outro lado, no aspecto jurídico do actual Projecto de Lei, cito o juiz
Pedro Vaz Patto no artigo: «O Divórcio Unilateral e a Sociedade sem
Vínculos» …«não se trata de qualquer progresso. Será, antes, o culminar de
uma progressiva descaracterização do próprio casamento e do próprio direito
da família… O casamento passará a ser, talvez, o mais instável e precário
dos contratos, mais do que um contrato de trabalho ou de arrendamento… Daqui
à abolição do próprio casamento, à sua irrelevância jurídica, o passo é
muito pequeno. O divórcio começou por ser encarado como uma sanção contra o
cônjuge que violou gravemente os seus deveres conjugais… Com o divórcio
unilateral, aquilo que começou por ser uma sanção contra quem viola os
deveres conjugais acaba por ser um prémio para o infractor. Sempre se
considerou um progresso civilizacional, reflexo da influência cultural do
cristianismo, a abolição da figura do repúdio, que permitia ao marido a
desvinculação imotivada dos seus compromissos conjugais. Com o divórcio
unilateral, pode dizer-se que renasce das cinzas tal figura. Dir-se-á que se
trata, agora, de um direito de qualquer dos cônjuges, e já não apenas do
marido. Mas, di-lo a experiência e também vários estudos, é, na maior parte
dos casos a mulher a sofrer as consequências nefastas (no plano económico,
psicológico e afectivo) da ausência de vínculos e do abandono conjugal. Nas
famílias monoparentais, o progenitor ausente é sempre o pai. Nunca houve
tantas mulheres sós e pobres…»

2 – Essencial estabilidade familiar

Como historiadora, verifico que os proponentes têm uma visão histórica muito
restrita no documento em questão e em outras declarações. Sobre o aspecto
histórico, cinjo-me agora à obra laica e abrangente (em 2 volumes) «Histoire
de la Famille», sob a direcção de André Burguière, Christiane
Klapisch-Zuber, Martine Segalen, Françoise Zonabend, edição Armand Colin,
Paris, 1986, com prefácio de Claude Lévi-Strauss. Este antropólogo social
escreve aqui (pág. 11): «La tendance générale est aujourd'hui d'admettre que
la «vie de famille», au sens que nous-mêmes donnons à cette locution, existe
dans l'ensemble des sociétés humaines. La famille, fondée sur l'union plus
ou moins durable mais toujours socialement approuvée d'un home et d'une
femme qui se mettent en ménage, procréent et elèvent des enfants, serait,
affirme-t-on souvent, présente dans tous les types de sociétés.» Havendo
excepções, escreve na pág. 12 que: «la famille conjugale y semble três
frequente et que, partout où sa forme s'altère, on a affaire à des sociétés
dont l'évolution sociale, politique, économique ou religieuse à suivi un
cours particulier.» A «Histoire de la Famille» abrange desde a Pré-História
à época actual, referindo numerosas civilizações e diferentes continentes.
Por exemplo, a propósito da antiga civilização egípcia, onde era prática o
repúdio por parte do homem e da mulher, são já largamente admitidos os
sentimentos pessoais de ambos.

Jock Goody, prefaciador do 2º volume da «Histoire de la Famille», que trata
da modernidade, escreve na pág. 12 «… en Chine rouge ou en Union Soviétique,
les assouplissements apportés aux législations familiales dans les débuts du
régime ont été ensuite modifiés, en partie pour des raisons politiques, en
partie pour répondre à des aspirations populaires généralement partagées;
des rituels laïcs se sont développés autour du mariage, et le divorce comme
l'avortement ont rencontré de plus en plus de difficultés.» Na pág. 13
escreve o mesmo autor: «Des gouvernementes du monde occidental ont adopté
une ligne différente en vue de maintenir une stabilité relative de leur
population et on même offert des allocations spéciales aux familles
nombreuses.»

Quando se invocam o repúdio, o divórcio, o aborto, como sendo modernos e de
esquerda, é interessante vermos a antiguidade milenar destas práticas e as
flutuações recentes que diversos condicionalismos lhes imprimiram, como, por
exemplo, a «Histoire de la Famille» objectivamente refere, e conforme
transcrevi. Acentue-se também o enfoque que, perante a «bomba de relógio
demográfica» actual, neste livro se dá ao apoio dos governos à criação de
famílias numerosas, para o que é essencial estabilidade familiar, não
bastando incentivos financeiros.

3 – Cristianismo aboliu Repúdio, protegendo as mulheres

É amplamente reconhecido ser corrente o repúdio também noutras épocas e
civilizações, como a judaica, a muçulmana, etc.

Sobre o repúdio judaico leia-se o Evangelho de S. Marcos, 10 – Jesus e o
divórcio - «Aproximaram-se uns fariseus e perguntaram-lhe, para o
experimentar, se era lícito ao marido divorciar-se da mulher. Ele
respondeu-lhes: «Que vos ordenou Moisés?». Disseram-lhe: «Moisés mandou
escrever um documento de repúdio e divorciar-se dela.» Jesus retorquiu:
«Devido à dureza do vosso coração é que ele vos deixou esse preceito. Mas,
desde o princípio da criação, Deus fê-los homem e mulher. Por isso, o homem
deixará seu pai e sua mãe para se unir à sua mulher, e serão os dois um só.
Portanto, já não são dois, mas um só. Pois bem, o que Deus uniu, não o
separe o homem.»

Anote-se, a propósito, o que quase nunca é mencionado: a declaração de
nulidade dos matrimónios que a Igreja Católica tem feito ao longo dos
séculos, quer a pedido de mulheres ou de homens, sem grandes custos
materiais e muitas vezes demorando menos tempo e envolvendo menores
conflitos do que os processos civis de divórcio, e tendo-se as declarações
de nulidade continuado naturalmente a realizar mesmo quando não havia
permissão de divórcio civil.

É claro que sou a favor do divórcio civil e penso que este sempre devia ter
existido, mas não deve tornar-se agora numa espécie de novo repúdio,
qualquer que seja a forma adoptada, pois o divórcio envolve sempre tristeza
e dor.

4 – Política deve utilizar moderna ciência da felicidade

Sublinhe-se que no séc. XXI há inovadoras formas científicas de lidar com a
inteligência emocional e social, que poderosamente ajudam à realização
individual e interpessoal, à felicidade, e inclusivamente a evitar
divórcios. Portanto, é esta a terceira via que eu advogo, na sequência de
anteriores tomadas de posição.

O Projecto de Lei nº 485/X do BE começa por citar: «O tema do divórcio…
sugere mal-estar, sofrimento… os processos de ruptura conjugal são
emocionalmente dolorosos» (in Anália Cardoso Torres, «Divórcio em Portugal,
Ditos e Interditos – Uma análise sociológica», Celsa Editora, 1996, p.1)

Também quero evitar o imenso sofrimento causado por choques emocionais, e
igualmente concordo com o Projecto de Lei do BE, quando refere a «exigência
da afectividade» e a necessidade da «sentimentalização da família». No
entanto, temos de ser realistas e acompanhar os estudos universitários
recentes sobre felicidade científica, não podendo sentimentalizar
excessivamente o amor, pois este é uma construção permanente, que implica
esforço. O divórcio de qualquer tipo (ou divórcios sucessivos), ou meras
ligações sentimentais múltiplas não trazem a verdadeira felicidade, como
estudos científicos comprovam.

Permita-se-me referir a Declaração de Voto que apresentei em 6 de Junho de
2007 (Diário da Assembleia da República, I série, 8 de Junho de 2007, pp. 49
a 51) sobre a necessidade de se criar uma disciplina obrigatória do 1º ao
12º ano de escolaridade de «Educação para a Felicidade», com base nos
conceitos científicos de inteligência emocional, o que me têm dito ser uma
urgência. As teorias complementares e ainda mais actuais da inteligência
social podem-se aplicar já por exemplo ao divórcio.

Cito Daniel Goleman «Social Intelligence. The Revolutionary new Science of
Human Relationships»,* *Bantam* *Dell, New York, 2007 (livro que tem os
subtítulos «Beyond IQ, beyond Emotional Intelligence»). A propósito desta
nova ciência, a «social neuroscience», ela tornou-se um assunto científico
de topo para o séc. XXI e prova que: «we are hardwired to connect, we are
programmed for kindness, and we can use our social intelligence to make the
world a better place»; «good relationships nourish us and support our
health, while toxic relationaships can poison us. And our success and
happiness on the job, in our marriages and families, even our ability to
live in peace, depend crucially on the emotional radar and specific skills».
Daniel Goleman nesta obra cita por exemplo John Gottman, um psicólogo da
Universidade de Washington que se tornou um perito no que faz os casamentos
terem sucesso ou falharem: «In dating couples, the most important predictor
of whether the relationship will last is how many good feelings the couple
shares. In marriages, it's how well the couple can handle their conflicts.
And in the later years of a long marriage, it's again how many good feelings
the couple shares» (pág. 219).

5 – Portugal pioneiro do humanismo do séc. XXI

Com a Ciência a apontar-nos cada vez mais certeiramente o caminho para a
felicidade, através da inteligência emocional, desde há décadas, e agora
também através da inteligência social, parece-me um inexplicável
desfasamento que a nível das cruciais decisões políticas estes conhecimentos
científicos ainda não sejam tidos em conta e aplicados. Portugal, no seu
multissecular vanguardismo humanista, deveria, na minha opinião, desempenhar
também aqui um vanguardismo descomplexado e até orgulhoso de ir contra a
corrente divorcista em moda, evitando a dor e lutando pela alegria que o
humanismo implica.

Não são os divórcios unilaterais, na hora, etc., que trazem a felicidade.
Luto por uma sociedade profundamente mais feliz, baseada nos afectos.
Acredito na comprovada felicidade científica, que passa pela inteligência
emocional e pela inteligência social. Urge criar estes princípios e estas
práticas na disciplina escolar de Educação para a Felicidade, mas também na
legislação que trata da Felicidade dos Indivíduos e das Famílias.

6 – Marco civilizacional: declaração universal dos direitos humanos

Lembro a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que este ano comemora 60
anos, e no seu Artigo 16º estipula: «1 – A partir da idade núbil, o homem e
a mulher têm o direito de casar e de constituir família…; 3 – A família é o
elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção desta
e do Estado».

1994 foi o Ano Internacional da Família (AIF) e a simbologia que acompanhou
esse ano foi: «Família: A mais Pequena Democracia no Coração da Sociedade».
O tema que a ONU propôs a todos foi: «Família: Capacidades e
Responsabilidades num Mundo em Transformação».

A Família, que é a mais Pequena Democracia, deve ter o maior apoio da maior
Democracia.

Palácio de S. Bento, 27 de Março de 2008

2 Comments:

Blogger Joaquim Alves said...

O que dizer se não: Eis uma pessoa lúcida que não embarca em modas!

4/14/2008 8:46 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Matilde Sousa Franco teve a supema lata de escrever:
"Pedi superiormente autorização para votar, na Assembleia da República,
contra o Projecto de Lei nº 485/X do Bloco de Esquerda... etc. e tal...

Então em que democracia estamos? Um deputado não pode votar livremente???
.

4/15/2008 6:19 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home

BlogBlogs.Com.Br