sexta-feira, abril 04, 2008

A Bactéria da Casa dos Trinta - Capítulo II, 6.ª parte

– Façam de conta que eu não estou aqui! – largou D. Jerónimo. – Que sou um fantasma! – E prosseguiu, agastado: – António, ponha-se na bicha, que eu cheguei primeiro!
Surpreendidos, Doroteia, pela interrupção, António pela reacção da irmã, Bernardo pela reacção da amante - pois a visão de D. Jerónimo, concedida a Genoveva e a sua ama, parecia estar vedada a homens, ou ao menos a Bernardo e António, os três ficaram em silêncio, Doroteia por respeito filial, os outros dois ao verem, Bernardo a amante, António a mana, fixada num ponto distante no vazio.
– Parece que os acontecimentos me vêm dar razão mais cedo do que esperaria. Este traste, filho de traste, não soube ter a dignidade de morrer lá pelo Chade, com os seus camaradas sem rosto da Legião, em vez de vir importunar a minha filha!
– Meu Pai… – fez Doroteia, antes de ser interrompida com veemência pelo Progenitor, sendo Progenitor® um medicamento com provas dadas no combate à infertilidade humana, e podendo «com veemência» ser substituído, não o Progenitor® , mas «com veemência», por «veementemente», ou mesmo, como agora se faz, segundo a hodierna tendência de não sobrecarregar os cérebros dos jovens com palavras demasiado extensas que não saberão processar, «veemente». Doroteia foi pois veemente interrompida pelo seu Progenitor® – O Medicamento dos Filhos de Algo.
– Cale-se, menina, e deixe-me falar! Pensa que ainda vivemos na Monarquia? Ou quiçá até no Absolutismo? Porque faz questão de se apaixonar apenas por pessoas da sua condição? Porquê essa obsessão, ou obsseção, como agora soe dizer-se, «soe dizer-se», como se dirá nos anos 60 e 70, para além daquela coisa horrível do «Este senhor, que faz o favor de ser meu amigo», que nos anos 80 e seguintes já só será dito pelo Carlos do Carmo e os comentadores desportivos, onde é que eu ia, porquê essa obcessão monocromática por hemoglobina azul? Parece-lhe menos digno apaixonar-se por alguém de fora da sua clique? Darwin não lhe diz nada? Selecção natural? Não, não é a selecção nacional… E consanguinidade, faz-lhe retinir alguma campainha?
Neste ponto, a campainha de D. Maria Pia despertou do seu torpor metálico, imaginando-se um rádio-despertador Sony Dream Machine, mas foi prontamente calada pelo ancião, ou ansião, como agora se diz, que lhe assestou um valentíssimo pontapé:
– E você, cale-se, seu símbolo de dominação, antes que a faça engolir o badalo! – E prosseguiu, imparável que nem uma vara de porcos instruída pelo Messias a espetar-se por uma ribanceira abaixo. – Pois saiu-lhe o tiro pela culatra, não foi? Saiu-lhe um comuna, não foi? O rebento do infame Marquês de Barcarena, é afinal um Bernardo Carrapiço da vida, e não vamos esmiuçar a etimologia da coisa! E agora, o que faz? Casa com o seu amor bolchevista, por quem esperou toda a vida, e descobre na noite de núpcias que ele passou demasiado tempo na companhia exclusiva de homens, no Chade, na República Centro­‑Africana, no Líbano, no Koweit, no Iraque, no Cambodja, na Bósnia, nos Congos, na Macedónia, no Carolina MIchaelis, se eu me esquecer de algum, diz, ó Bernie Boy... Hein?

Bernardo, talvez maçado com o ar abstraído de Doroteia, que lhe parecia como que fita nas palavras de um fantasma, voltava agora as suas atenções para António. O amigo surgia-lhe, passados todos estes anos, a outra luz. Fazia-lhe lembrar um seu companheiro de armas no Chade, na República Centro-Africana, no Líbano, no Koweit, no Iraque, no Cambodja, na Bósnia, nos Congos, na Macedónia, no Carolina Michaelis. Um companheiro cuja companhia apreciava muitíssimo.

António não estava preparado para o que estava para vir, para a tragédia inelutável que se preparava para abater sobre si, a sua família, e toda a Casa dos Novelões. Pois os seus olhos não divisavam, os seus ouvidos não ouviam assombrações. E as palavras premonitórias do Progenitor® haviam-lhe passado ao lado: «Ponha-se na bicha!»

Fim do II Capítulo

Isílio Verdasca



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