Abril também é Recordação
GLOSAS A ROSAS - A Esquerda amnésica e o 25 de Abril
Publicado a 4 de Fevereiro de 2004 no NQdI
Há que reconhecer que já criaram uma imagem de marca, a aversão parola à gravata, a camisinha Façonnable em tons escuros, o cabelo cuidadosamente em desalinho (e, nalguns casos, o cachimbo incensando a insensatez). Muito sabedores e pretensiosos nesse estilo de compromisso entre o empregado de galeria de arte de terceira categoria e o revolucionário aburguesado, com o seu progressismo postiço, esse verniz que não tapa o caceteirismo instintivo e à flor da pele, eles são os herdeiros políticos e culturais da extrema-esquerda portuguesa de sempre. Emblematicamente escondidos, por acerto da história, no meio de partidos travestidos e fundidos em “movimento”, apostados em fazer esquecer a sua própria história feita do combate activo contra a democracia parlamentar. Essa é a esquerda na moda: o campo ideológico dos que não esqueceram nada e só aprenderam marketing. E que também reconhecemos, na empáfia intelectualeira de Fernando Rosas, o mentor menor da pandilha; em versão “hard” no excesso histriónico e nas pregações hipócritas do “Grande Educador” Louçã; ou, em versão “soft” de revista cor-de-rosa, no registo gauchochic de Miguel Portas. São eles que comandam a actual Oposição.
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São eles, juntamente com outros dirigentes do PCP e PS em registo mais discreto, que, neste 30.º aniversário do 25 de Abril de 1974, querem ajustar contas com a história. Pessoalmente, acho que têm boas razões para o fazer. O processo revolucionário originado no “25 de Abril” foi um momento histórico singular no século XX português: ele fez tremer e abalou nos seus fundamentos a arrogância dos arrivistas jacobinos, apostados na sovietização, cubanização, maoização e albanização do país, rapidamente apegados ao privilégio, ao saque, ao abuso e à prepotência impunes, antevendo a vida próspera e plácida à sombra do regime totalitário que queriam criar para os servir. O 25 de Abril deixou antever um mundo virado do avesso, que os portugueses recusaram de forma firme e pronta. E os aspirantes a déspotas de ontem ainda não esqueceram, nem esquecerão tão cedo, o susto de verem o povo - de que se arrogaram donos e representantes - a repudiar, enojado, as suas “soluções” - para Portugal.
Essa esquerda, que não esquece nem aprende nada, escorada em alguma historiografia marxista não muito recente, vem contar-nos a lenda de uma efémera idade de ouro, um momento fugaz de contacto com o “céu”, que, nos idos de 74 e 75, floria frondosamente num processo de “convergência real” com os outros povos socialistas libertados (para o que a instauração de um regime totalitário seria vantajosa), até suceder a “tragédia” da consolidação da democracia, interrompendo essa senda virtuosa. Escamoteiam o essencial: quem foi que, então, defendeu, de facto, a democracia, quem foram os partidos que se bateram pela institucionalização de um sistema político de modelo ocidental (apesar das retóricas constitucionais).
A esquerda que vai cautelosamente destilando o discurso da reabilitação do seu próprio passado e da demonização do antes e do depois da revolução, essa mesma que serviu ditaduras e procurou instalar uma em Portugal, sem estados de alma nem angústias democráticas, em lugares de responsabilidade política e advogando o sistema de partido único, descobriu recentemente que só existiu verdadeira democracia em Portugal no período de 1974/75 quando pôde dar vazão aos seus ímpetos revanchistas e sabáticos. Opondo essa sua “democracia” de projecto revolucionário à democracia de facto e de direito, reconhecida e aceite como tal em todos os países civilizados, espécie de epílogo burguês e capitalista das novas “auroras cantantes”.
Esquecem que não há liberdade sem justiça, e a “desordem” pós-25 de Abril acarretou, necessariamente, muitas e graves violações a estes dois princípios. A manipulação grosseira que então fizeram das, disfemisticamente chamadas, “massas” - grupos ultra-minoritários, como as eleições se encarregaram de demonstrar - condicionaram de forma séria e, nalguns casos irreversível, o movimento militar, composto por gente de todos os quadrantes políticos, e a evolução do próprio país.
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São eles, juntamente com outros dirigentes do PCP e PS em registo mais discreto, que, neste 30.º aniversário do 25 de Abril de 1974, querem ajustar contas com a história. Pessoalmente, acho que têm boas razões para o fazer. O processo revolucionário originado no “25 de Abril” foi um momento histórico singular no século XX português: ele fez tremer e abalou nos seus fundamentos a arrogância dos arrivistas jacobinos, apostados na sovietização, cubanização, maoização e albanização do país, rapidamente apegados ao privilégio, ao saque, ao abuso e à prepotência impunes, antevendo a vida próspera e plácida à sombra do regime totalitário que queriam criar para os servir. O 25 de Abril deixou antever um mundo virado do avesso, que os portugueses recusaram de forma firme e pronta. E os aspirantes a déspotas de ontem ainda não esqueceram, nem esquecerão tão cedo, o susto de verem o povo - de que se arrogaram donos e representantes - a repudiar, enojado, as suas “soluções” - para Portugal.
Essa esquerda, que não esquece nem aprende nada, escorada em alguma historiografia marxista não muito recente, vem contar-nos a lenda de uma efémera idade de ouro, um momento fugaz de contacto com o “céu”, que, nos idos de 74 e 75, floria frondosamente num processo de “convergência real” com os outros povos socialistas libertados (para o que a instauração de um regime totalitário seria vantajosa), até suceder a “tragédia” da consolidação da democracia, interrompendo essa senda virtuosa. Escamoteiam o essencial: quem foi que, então, defendeu, de facto, a democracia, quem foram os partidos que se bateram pela institucionalização de um sistema político de modelo ocidental (apesar das retóricas constitucionais).
A esquerda que vai cautelosamente destilando o discurso da reabilitação do seu próprio passado e da demonização do antes e do depois da revolução, essa mesma que serviu ditaduras e procurou instalar uma em Portugal, sem estados de alma nem angústias democráticas, em lugares de responsabilidade política e advogando o sistema de partido único, descobriu recentemente que só existiu verdadeira democracia em Portugal no período de 1974/75 quando pôde dar vazão aos seus ímpetos revanchistas e sabáticos. Opondo essa sua “democracia” de projecto revolucionário à democracia de facto e de direito, reconhecida e aceite como tal em todos os países civilizados, espécie de epílogo burguês e capitalista das novas “auroras cantantes”.
Esquecem que não há liberdade sem justiça, e a “desordem” pós-25 de Abril acarretou, necessariamente, muitas e graves violações a estes dois princípios. A manipulação grosseira que então fizeram das, disfemisticamente chamadas, “massas” - grupos ultra-minoritários, como as eleições se encarregaram de demonstrar - condicionaram de forma séria e, nalguns casos irreversível, o movimento militar, composto por gente de todos os quadrantes políticos, e a evolução do próprio país.
No decurso do processo revolucionário, é sabido que as liberdades, mesmo as mais elementares, estiveram, por vezes, sob a mira de tentações várias desta esquerda que ameaçariam a própria sobrevivência e unidade de Portugal. O cerco à Assembleia Constituinte que protagonizaram e/ou apoiaram demonstra à saciedade a sua fundada crença no sistema em que vivemos e a fé inabalável no tal povo que tanto alardeiam e nos princípios e liberdades que dizem defender. Mas foi porque elas, em todas as circunstâncias, foram mais fortes e prevaleceram como conquistas inabaláveis, isto é, como realidades políticas civicamente conquistadas e não toleradas pela generosidade de um poder tutelar previdente, que foi possível fazer o 25 de Novembro, aprovar a Constituição e institucionalizar a democracia em 1976. E, já agora, que foi possível permitir a esta esquerda anti-sistémica e anti-democrática que aceitasse as regras e se integrasse no sistema político, revelando uma magnanimidade que, se o desfecho tivesse sido outro, nunca teria existido. É por isso que se pode perceber que o PREC seja visto hoje como um grosseiro e anacrónico atentado contra a liberdade individual, a propriedade privada e a economia nacional, responsável em grande medida pela crise que se seguiu, mercê da manipulação multiforme da chamada iniciativa popular, que, com óbvia instigação dos directórios partidários e militares que lhes prometeram a conquista do céu, (sem sentir as cordas do bonecreiro) ocupou de forma atrabiliária, quase sempre caótica e violenta e, em muitos casos, criminosa, as ruas, as casas, estivessem devolutas ou habitadas, as terras de latifúndio e minifúndio, estivessem ou não a ser bem exploradas, as empresas abandonadas e viáveis (desde que não fossem estrangeiras). Foi na rejeição desse modelo e de todos os outro modelos ditatoriais que se fundou o que de melhor vive da Revolução de 1974/75 e foi essa a génese específica e distintiva da democracia portuguesa. E é contra esse património genético que hoje se afadigam os próceres desta esquerda portuguesa.
Mas talvez uma das bandeiras mais brandidas desta esquerda amnésica e nostálgica da gesta dos comandantes e timoneiros seja a do anti-colonialismo e da falta de respeito pelos que viveram no Ultramar e aí combateram por obrigação ou por convicção numa ideia de Portugal que nem foi sempre minoritária, nem foi sempre inviável, mas que acabou. Esquece as suas responsabilidades na entrega vergonhosa e irresponsável do poder sem qualquer processo de autodeterminação aos grupos combatentes, na instigação continuada da deserção do nosso exército, a sua contribuição activa para a afirmação de dirigentes corruptos e criminosos educados nas escolas soviética e chinesa (e americana), para a eclosão das guerras civis, para o destroçar de sociedades e economias e para a contabilização de milhões de mortos. Esta esquerda aplaudiu ruidosamente o alijar irresponsável da “carga” por parte de Portugal, enquanto caucionou e saudou as intervenções, essas sim, colonialistas de Moscovo e Cuba por todo o continente africano. O resultado das “libertações” que promoveram está hoje à vista de todos.
E é intolerável que 30 anos depois, apesar de tudo em democracia, face à miséria, degradação e corrupção que assolam a África, haja forças políticas que se permitam o discurso serôdio da apologia pura e simples das descolonizações e dos “movimentos de libertação nacional” com pouco mais do que o propósito rasteiro de arrebanhar alguns votos entre o mesmo pacifismo suburbano que, no tempo da guerra fria, bramava contra os americanos.
Mas talvez uma das bandeiras mais brandidas desta esquerda amnésica e nostálgica da gesta dos comandantes e timoneiros seja a do anti-colonialismo e da falta de respeito pelos que viveram no Ultramar e aí combateram por obrigação ou por convicção numa ideia de Portugal que nem foi sempre minoritária, nem foi sempre inviável, mas que acabou. Esquece as suas responsabilidades na entrega vergonhosa e irresponsável do poder sem qualquer processo de autodeterminação aos grupos combatentes, na instigação continuada da deserção do nosso exército, a sua contribuição activa para a afirmação de dirigentes corruptos e criminosos educados nas escolas soviética e chinesa (e americana), para a eclosão das guerras civis, para o destroçar de sociedades e economias e para a contabilização de milhões de mortos. Esta esquerda aplaudiu ruidosamente o alijar irresponsável da “carga” por parte de Portugal, enquanto caucionou e saudou as intervenções, essas sim, colonialistas de Moscovo e Cuba por todo o continente africano. O resultado das “libertações” que promoveram está hoje à vista de todos.
E é intolerável que 30 anos depois, apesar de tudo em democracia, face à miséria, degradação e corrupção que assolam a África, haja forças políticas que se permitam o discurso serôdio da apologia pura e simples das descolonizações e dos “movimentos de libertação nacional” com pouco mais do que o propósito rasteiro de arrebanhar alguns votos entre o mesmo pacifismo suburbano que, no tempo da guerra fria, bramava contra os americanos.
A esquerda de que vos falo não é uma abstracção retórica ou uma figura de estilo. Ela não só condiciona tentacularmente o poder mediático, como, com os seus dois e pouco por cento que lhe deram as urnas, tem refém toda a oposição, dependente do apoio da extrema-esquerda para apresentar propostas ou tentar fazer a diferença. Ela é a cara da tolerância face ao terrorismo, da imposição da ditadura das minorias, do igualitarismo cego, do despesismo como solução para todos os problemas, da desconsideração pelo papel e importância das forças armadas, da retórica da preocupação social mas do desconhecimento profundo da realidade, da desconsideração dos direitos das crianças por nascer, tratando-os como massa de células irrelevante, como vida putativa apenas e só “se a dona da barriga” a quiser, da desconsideração e desrespeito pelas tradições, hábitos, costumes e crenças do seu próprio povo, do facilitismo desculpante, do absoluto relativismo, do ataque reiterado ao papel das polícias, da sobranceria pseudo-intelectual de pacotilha, do revisionismo da sua própria (e triste) história.
Esta minoria radical, populista e trauliteira puxou para a esquerda a já esquerdeada esquerda portuguesa. Uns e outros querem levar o país, o país que trabalha, que estuda, que ensina, que cria, a uma das piores crises da sua história recente.
Oxalá a convocatória ao debate cívico deste 30.º aniversário do 25 de Abril possa contribuir para desmontar a pressão para o endeusamento ritual e acrítico da efeméride e, assim, para a sua negação, implícitos nos propósitos ideológicos desta esquerda assente no quarto poder. Também com esse debate, e trinta anos depois, estaremos a discutir os destinos da democracia portuguesa.
Esta minoria radical, populista e trauliteira puxou para a esquerda a já esquerdeada esquerda portuguesa. Uns e outros querem levar o país, o país que trabalha, que estuda, que ensina, que cria, a uma das piores crises da sua história recente.
Oxalá a convocatória ao debate cívico deste 30.º aniversário do 25 de Abril possa contribuir para desmontar a pressão para o endeusamento ritual e acrítico da efeméride e, assim, para a sua negação, implícitos nos propósitos ideológicos desta esquerda assente no quarto poder. Também com esse debate, e trinta anos depois, estaremos a discutir os destinos da democracia portuguesa.
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