sexta-feira, março 14, 2008

O saltério à ilharga da chita - Capítulo II, 2.ª parte


Doroteia fechou a "Crónica dos Senhores dos Novelões" e pousou-a religiosamente sobre a pesada mesa indo-portuguesa que ocupava o centro da biblioteca. Nas noites de insónias como aquela gostava de passar os olhos pelas vidas, nomes e lugares que desembocavam em si.

Confortava-a perceber em que medida era antiga, forte e frondosa a sua cepa e, simultaneamente, perseguia-a a inquietação de poder não estar à altura de semelhante responsabilidade. Nos Novelões, a expressão noblesse oblige fora sempre entendida com o acento tónico na última palavra e Doroteia temia que ela e o mano António estivessem a incumprir as suas obrigações e revelassem, afinal, serem feitos de outra massa que não a estóica, sólida e temerária dos seus avoengos.

Como a avaliariam o tetravô Rodrigo que, sozinho e munido apenas da espetada de carne mal-passada e do jarro de carrascão com que então se debatia, matou três renegados franceses que fugiam do exército de Junot e procuravam aboletar-se nos Novelões? Ou Dona Lourença Custódia Vicência, a varejeira, capaz de derrotar no jogo do pau o noivo castelhano imposto por seu pai, posteriormente conhecido por o Belfo por nunca ter recuperado convenientemente da varada certeira no céu-da-boca que dela recebeu? Seriam benevolentes para consigo? Ou revolver-se-iam irados sob o lajedo fúnebre ao constatarem o decaimento da sua raça outrora pujante e fecunda? Que consumição!

Enquanto recordava os gritinhos indiscretos de M. Efigénia, saídos no dia anterior do escritório de António, e o atabalhoamento de Genoveva na lida doméstica (que já lhe custara uma terrina Companhia das Índias), Doroteia sentiu que perdera o pulso, que deixara de exercer qualquer tipo de mando efectivo sobre a sua gente. Permitira que a anarquia se instalasse a bel-prazer! Tudo porque frequentemente não estava em si. Havia muito que os delírios, as visões e as perdas de consciência que a atormentavam tinham passado a ser motivo de conversa e de chacota, galgando os altos muros dos Novelões.

Todos em Chão de Meninos sabiam que a Senhora da Casa era dada a achaques. Entre dentes, o populacho dava largas ao ressaibo chamando-lhe "a doente", " a louca" ou "a bazarouca", o que muito a amarfanhava e enfurecia.

À pergunta "A Menina como tem passado?" muitos, por piedade genuína ou troça velada, atalhavam "Mal, não é? Coitadinha! Estimo as melhoras da Menina!" sem lhe darem sequer tempo de articular a quinta parte de meio monossílabo.

O próprio Padre Malaquias, administrador da paróquia, celebrante habitual na capela de Santo Estêvão e assíduo frequentador dos jantares de Domingo nos Novelões, afastara-se do seu convívio, o que também a mortificava horrivelmente. Que culpa tinha ela pelo que lhe tinha acontecido e pelas sequelas que deixara? Podia alguém, em sã consciência, acusá-la do que quer que fosse? A ela, logo a ela, cujo único pecado foi querer fazer sempre o que estava certo?

Era cruel o mundo para as mulheres magoadas. Frio, áspero e inóspito como o interior de um congelador pouco cheio.

- A Senhora Dona Doroteia precisa de alguma coisa? Olhe que se constipa sem o roupão! Quer que acenda a lareira?

A voz arrastada e trémula da fiel Alice despertou-a do sopitamento em que - reparava agora - se encontrava mergulhada ia para três horas.

- Não, obrigada, Alice. Vai-te deitar que ainda é cedo.

Lá fora, a luz tomava lentamente o lugar do negrume. A luta eterna voltava a pender provisoriamente para o lado da claridade. Graças a ela, as formas recuperavam os contornos que a noite elidira. Até os da própria Doroteia cuja camisa-de-noite revelava, sem que esta se apercebesse, muito mais do que o seu pudor alguma vez consentiria.

- O Paraíso não pode ser mais bonito. Trocava-o sem hesitar por esta visão.
- Bernardo?! Que fazes tu aqui?!

Isílio Verdasca

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Este padre Malaquias cheira-me a esquerdalha

3/14/2008 6:49 da tarde  

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