sexta-feira, março 07, 2008

O Mistério das Empadas de Cintra - Capítulo I, 4.ª parte



Ainda com os camelídeos a palpitarem-lhe na retina, Doroteia começou a tactear o vazio, procurando evitar que fosse ela agora a derribar o jarrão que desafiava, com deseducada bazófia, as leis da gravidade. Sentia que tinha de sair da biblioteca. Era a vertigem do movimento que sempre sucedia à placidez da inércia quando as corcovas dos etéreos ruminantes se assumiam dromedariamente unas. E Doroteia via-as aproximarem-se perigosamente, enquanto os animais se contorciam, num rebusnar ensudercedor, sofrendo as ideadas simplificações anatómicas.

- Estás aí, Genoveva? perguntou ainda cega.

- Sim, senhora D. Doroteia. Aqui mesmo, a segurar o jarrão…

- Chama a Maria. E para ti sou Senhora Dona Doroteia! corrigiu.

- Também eu estou aqui, senho… Respondeu lépida, posto que logo arrependida.

- Estás aí, Genoveva? insistiu Doroteia com uma mirada menos vaga. Os ruminantes minguavam e desobstruíam paulatinamente os nervos ópticos. Não eram mais do que um par de lebres bravas, magras de famintas que estavam. A seca, que diziam extrema, deixara inane a leira do Convento onde outrora, nos anos felizes, orgias de ervas de todo o tipo saciavam os atrevidotes láparos e animavam as piedosas irmãs.

- Sim, minha senhora… Disse com uma voz tão sumida quanto o seu receio impunha.

- Porque não fizeste o que te disse?

- Desculpai-me, senhora, mas o que não fiz?

- Chamaste, por acaso, a Maria, como te ordenei? Agora apenas dois, dois ratinhos de laboratório, raquíticos, branquinhos, um em cada vista…

- Não, senhora, pois se ela respond… o franzir da testa de Doroteia anunciava bisontes, manadas deles, ávidos de lhe ocuparem os globos oculares, e antes que eles tomassem posição, Genoveva gritou… MARIAAAAA…

- Que desajeitada, rapariga. Desabafou, cansada, Doroteia. - Mandei que chamasses a Maria! não te pedi que matasses de apoplexia o Senhor prior que deve estar a celebrar na Capela de Santo Estêvão. Valha-me, Deus, criatura. Quero a campainha. Aquela que a Rainha Dona Maria Pia ofereceu a esta Casa. É disso que agora preciso. Ela tem de se fazer ouvir. A Campainha. E não lhe toques. Só eu lhe posso e a posso tocar.


Isílio Verdasca
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