O Magistério da Entrada Estreita - Capítulo II, 3ª Parte
E quem é Bernardo, perguntará o leitor fidelíssimo que tem vindo a acompanhar pertinazmente o novelo emaranhado desta novela, desejoso de saber se deverá acrescentar este novo onomasto ao já extenso rol de personagens, expediente que lhe parece indispensável para não perder o fio à meada? Curioso, veja-se como são as coisas, é que este narrador se preparava para lhe perguntar outro tanto. Não pense o leitor que um narrador é uma entidade omnisciente na segurança duma trama que previamente definiu, una e indivisível na coerência do produto final da sua pena. Não, o contador de histórias pode ser um, dois, e até três egos diferentes, lutando entre si de forma mais ou menos diplomática pela preponderância na escolha do rumo do enredo. Umas vezes estas três partes da sua personalidade parecerão quase uma só, mas de outras guerrear‑se-ão num antagonismo surdo de acção e reacção, onde tudo pode acontecer: guinadas no fio da história, personagens apagadas da lista, neutralização de caminhos que se adivinhavam prometedores, novas personagens que surgem do nada sem que nada o fizesse prever.
Não desanime o leitor. É bem sabido que só de mentes controvertidas e disfuncionais saem obras de arte dignas do atributo, e que grandes sinfonias, como grandes pinturas, podem sair de quem perdeu o ouvido, como Beethoven e Van Gogh. Assim também desta esquizofrenia algum bem há-de sair, assim possa o leitor fiel suportar as guinadas desta viagem atribulada por desfiladeiros imprevisíveis.
Enquanto o narrador procura nas convoluções da sua mente insondável quem é este Bernardo, donde vem, e para onde irá, retomemos por momentos a visão de Genoveva, o alegado fantasma de D. Jerónimo, segundo a sua certeza inabalável.
Penetrando na sala, céptica ainda, Doroteia confrontou-se com seu pai, tal como o conhecera, nada como nas visões translúcidas e etéreas tão vulgarizadas nas ilustrações dos Dorés dos livros. Não fora aquele peculiaríssimo pormenor de à matéria dizer nada sempre que um móvel se lhe atravessava no caminho, e dir-se-ia igual a qualquer outro ser humano. Vivo, entenda-se. E com aquele vozeirão que sempre lhe infundira um respeito eivado de temor, que procurava travestir de devoção filial.
– Meu pai, que prodígio é este que vos traz miraculosamente de volta a mim? Que dádiva dos céus me concede o que mais desejo desde que partistes, que a roda da vida possa andar por uma vez para trás, e trazer-me de volta quem me deu a vida?
– Ó menina, deixe-se disso, que as Conferências do Casino já foram nos anos 70, e essas tiradas camilianas ultra-românticas agradariam a seu tio-avô Augusto, mas já não têm cabimento nos nossos dias, e sobretudo não fazem o género dum espírito positivista como o meu! Fale português de gente, que eu não vim de tão longe para trocar gongorismos.
– Seja, meu pai. Será mais uma veneta deste narrador que insiste em não respeitar o nosso trabalho, alterando diariamente o guião de modo a que nunca saibamos verdadeiramente quem somos ao certo. Mas essa é afinal a condição humana, não é?
– Bom, agora deu-lhe para existencialista, é isso? Mas adiante. Sabe o que me trouxe por cá?
– Não faço a mínima, paizinho. – Doroteia começava a apanhar-lhe o jeito.
– Nem menos nem mais que adverti-la para o que por aí virá ameaçar esta Casa que faz mais parte de nós que o sangue que nos circula nas veias. Bolas, está a ver, já começo a falar como a menina!
D. Jerónimo parou por momentos, pigarreando como que para reorganizar as ideias. E de seguida:
– Estive no futuro. No futuro é como quem diz, que isto da eternidade, para um fantasma, é uma grande salganhada. Bem faria em ter seguido as recomendações do Cónego Malaquias, O Velho, o pai do Padre Malaquias Júnior, o que ficou administrador da paróquia por intervenção minha, lembra-se?
– Pois como não havia de me lembrar, meu pai, se ele cá jantava todos os domingos? Ultimamente é que tem andado meio arredio, nem sei bem porquê…
– Pois o pai dele fazia honra ao seu nome de profeta bíblico, e aconselhava-me ele, Jerónimo, leva desta vida o que ela tem para te dar, mas quando sentires que o fim pode estar ao virar da esquina, prepara-te, arrepia caminho, toma emenda, não sejas tu apanhado como o é pelo ladrão o dono da horta que se deixa adormecer. Sobretudo, não te fiques pelas meias-tintas, porque podes não ir para o Inferno, mas de assentar praça em fantasma não te livras, e arrastarás tua existência tristemente para sempre. Nunca poderás consumar acção alguma, pois quando te parecer atingido o objectivo, ele esfumar-se-te-á nas mãos, como rolava a Sísifo o calhau encosta abaixo. Uma única coisa te será dado fazer, advertir os que te são próximos para que não repitam teus erros…
Um estrondo interrompeu de súbito o discurso de D. Jerónimo, que estremeceu como se tivesse visto um fantasma, e deixou Doroteia sem pinga de sangue.
Na soleira da porta, com ar de urso bipolar em fase antárctica, a quem houvessem interrompido a hibernação para anunciar a última saída da casa de Pêro Pinheiro, um homem. Doroteia não se conteve:
- Bernardo?! Que fazes tu aqui?!
Não desanime o leitor. É bem sabido que só de mentes controvertidas e disfuncionais saem obras de arte dignas do atributo, e que grandes sinfonias, como grandes pinturas, podem sair de quem perdeu o ouvido, como Beethoven e Van Gogh. Assim também desta esquizofrenia algum bem há-de sair, assim possa o leitor fiel suportar as guinadas desta viagem atribulada por desfiladeiros imprevisíveis.
Enquanto o narrador procura nas convoluções da sua mente insondável quem é este Bernardo, donde vem, e para onde irá, retomemos por momentos a visão de Genoveva, o alegado fantasma de D. Jerónimo, segundo a sua certeza inabalável.
Penetrando na sala, céptica ainda, Doroteia confrontou-se com seu pai, tal como o conhecera, nada como nas visões translúcidas e etéreas tão vulgarizadas nas ilustrações dos Dorés dos livros. Não fora aquele peculiaríssimo pormenor de à matéria dizer nada sempre que um móvel se lhe atravessava no caminho, e dir-se-ia igual a qualquer outro ser humano. Vivo, entenda-se. E com aquele vozeirão que sempre lhe infundira um respeito eivado de temor, que procurava travestir de devoção filial.
– Meu pai, que prodígio é este que vos traz miraculosamente de volta a mim? Que dádiva dos céus me concede o que mais desejo desde que partistes, que a roda da vida possa andar por uma vez para trás, e trazer-me de volta quem me deu a vida?
– Ó menina, deixe-se disso, que as Conferências do Casino já foram nos anos 70, e essas tiradas camilianas ultra-românticas agradariam a seu tio-avô Augusto, mas já não têm cabimento nos nossos dias, e sobretudo não fazem o género dum espírito positivista como o meu! Fale português de gente, que eu não vim de tão longe para trocar gongorismos.
– Seja, meu pai. Será mais uma veneta deste narrador que insiste em não respeitar o nosso trabalho, alterando diariamente o guião de modo a que nunca saibamos verdadeiramente quem somos ao certo. Mas essa é afinal a condição humana, não é?
– Bom, agora deu-lhe para existencialista, é isso? Mas adiante. Sabe o que me trouxe por cá?
– Não faço a mínima, paizinho. – Doroteia começava a apanhar-lhe o jeito.
– Nem menos nem mais que adverti-la para o que por aí virá ameaçar esta Casa que faz mais parte de nós que o sangue que nos circula nas veias. Bolas, está a ver, já começo a falar como a menina!
D. Jerónimo parou por momentos, pigarreando como que para reorganizar as ideias. E de seguida:
– Estive no futuro. No futuro é como quem diz, que isto da eternidade, para um fantasma, é uma grande salganhada. Bem faria em ter seguido as recomendações do Cónego Malaquias, O Velho, o pai do Padre Malaquias Júnior, o que ficou administrador da paróquia por intervenção minha, lembra-se?
– Pois como não havia de me lembrar, meu pai, se ele cá jantava todos os domingos? Ultimamente é que tem andado meio arredio, nem sei bem porquê…
– Pois o pai dele fazia honra ao seu nome de profeta bíblico, e aconselhava-me ele, Jerónimo, leva desta vida o que ela tem para te dar, mas quando sentires que o fim pode estar ao virar da esquina, prepara-te, arrepia caminho, toma emenda, não sejas tu apanhado como o é pelo ladrão o dono da horta que se deixa adormecer. Sobretudo, não te fiques pelas meias-tintas, porque podes não ir para o Inferno, mas de assentar praça em fantasma não te livras, e arrastarás tua existência tristemente para sempre. Nunca poderás consumar acção alguma, pois quando te parecer atingido o objectivo, ele esfumar-se-te-á nas mãos, como rolava a Sísifo o calhau encosta abaixo. Uma única coisa te será dado fazer, advertir os que te são próximos para que não repitam teus erros…
Um estrondo interrompeu de súbito o discurso de D. Jerónimo, que estremeceu como se tivesse visto um fantasma, e deixou Doroteia sem pinga de sangue.
Na soleira da porta, com ar de urso bipolar em fase antárctica, a quem houvessem interrompido a hibernação para anunciar a última saída da casa de Pêro Pinheiro, um homem. Doroteia não se conteve:
- Bernardo?! Que fazes tu aqui?!
Isílio Verdasca
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home