quarta-feira, março 19, 2008

O Baptistério da Morgada de Sintra – Capítulo II – 4ª parte



A interrogação de Doroteia, proferida com um esgar que não se sabia se de dor ou comoção, como que ecoou, repetidamente, na sua própria cabeça. Enquanto aguardava pela resposta que não vinha, sentiu a corrida rápida do Macau por entre as suas pernas. Nunca entendera por que bulas o raça do bichano se aventurava em gincanas humanamente impossíveis para chegar ao seu destino. A qualquer destino. Nunca uma tíbia e um perónio verticalmente arrumados entre um tornozelo e um joelho escaparam à felina inclinação do bicho para o atletismo. Nos Novelões sempre se orgulharam da visão aquilina do Macau. Uma bomba! Dizia-se que cheirava qualquer rato a, pelo menos, 5 jardas de distância... a não ser que o Cónego Malaquias se interpusesse entre ele e o murídeo. A sotaina deslavada, pela qual o prelado dizia ter grande afeição (por certo proporcional ao facto de não ter outra), cegava qualquer lince. Mesmo já entrado praticamente na oitava vida, o Macau não dispensava o seu exercício, agora ainda mais radical, porquanto desde o óbito do Cónego, velado com todas as honras na capela dos Novelões, não mais o odor da talar veste se desalojara das suas vítreas retinas.
- Sai, Macau! Deixa o Pai em paz! gritou Doroteia. Estava visivelmente perturbada. Sempre o gato devotara por D. Jerónimo uma fidelidade canina. Estava agora claro que até o cego animal o via. E lambia sofregamente a esfumada silhueta, agora exangue. Pálida. E à medida que Macau passava a língua por ela, mais esbatida ficava. O grito de Doroteia procurava, sobretudo, que o gato não tragasse, lambidamente, aquela paterna aparição. Que seria, o seu Pai sorvido!
- Sai Macau! que também a ti te entrego à China... Era ao som desta ameaça que todos os meninos nos Novelões eram seduzidos a comer a sopa, ou a arrumar o quarto dos brinquedos, ou a não depenar vivos os cisnes do lago. A China era uma criada que, por trabalhadeira e barata, um antigo Senhor da Casa trouxera do Oriente, quando por lá andou quase dois anos em missão que se sabia, se não secreta, seguramente sigilosa. Dela não restou coisa alguma. Nem sepultura. Só a memória da pedagogia persuasiva das suas inusitadas feições.
A nitidez de D. Jerónimo estava claramente a sofrer a erosão do bicho. Mas permanecia quedo, estático, imóvel. Branco como a cal. Porém feito de sal. Mais petrificado estava D. Jerónimo do que a mulher de Lot, à vista da destruição de Sodoma. Macau por fim lá se escapuliu, depois de ter procurado, em vão, contornar as ossadas pernilongas de D. Jerónimo. Mesmo petrificado, salinizado, era apenas fumo. Fumus salis, como diria o Cónego Malaquias. E por certo, dotado que era de uma perspicácia quase humana, o instinto privilegiado lhe teria recomendado que evitasse a ingestão excessiva de cloreto de sódio. Morrer cego, ainda vá. Hipertenso, sendo gato, é que não!
- Bernardo?! Que fazes tu aqui?!, repetiu Doroteia.
Isílio Verdasca
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