As Três Mercearias
Quando eu era miúdo, no meu bairro só havia a mercearia do Sr. Valadão. Gostava imenso de lá ir todos os dias, com a minha Mãe e os meus irmãos, e a minha tenra idade fazia-me tomar por atraente destino de excursão diária o que mais tarde viria a perceber ser mero estagnado ponto de venda parado no tempo.---
À medida que foi crescendo a minha percepção do mundo, extravasando os doces limites das pinhoadas e pastilhas Pirata, fui sentindo que o Sr. Valadão cada vez tinha menos para nos oferecer. Poucas marcas, produtos muito próximos do fim do prazo de validade, um atendimento cortês mas demorado, pouco adequado à minha impaciência de pré-adolescente, a sugestão de irmos munidos de sacos de pano, que os de plástico eram caros – e a minha Mãe acrescentava mesmo em tom crítico que o Sr. Valadão abria às horas que queria e fazia os preços que lhe apetecia. Às vezes, dava-se até ao luxo de fechar a porta e sair por grandes temporadas, a fazer sabe-se lá o quê, deixando os clientes confrontados com uma tabuleta que dizia «Pedimos desculpa por esta interrupção – a mercearia reabre dentro de momentos.»
A mercearia do meu bairro, a única que ali algum dia existira, começava a cansar-nos.
Foi por isso que acolhemos com natural expectativa, que cedo se transformou em impaciência, e em breve redundou em ansiedade, a notícia da abertura no ano seguinte, em 1992 (lembro-me como se fosse hoje) de duas novas mercearias que iriam revolucionar o panorama do abastecimento alimentar e similares no bairro.
Que emoção, nesse 6 de Outubro, às anunciadas quatro e meia da tarde, quando finalmente abriram as mercearias do Sr. Francisco e do Sr. Moniz! Cenários de cores vivas onde antes só havia cambiantes de cinzento e beige; produtos de que nunca ouvira falar; promoções irresistíveis, e – acima de tudo – empregadas lindíssimas, produzidíssimas, que disparavam um sorriso de orelha a orelha assim que transpúnhamos a ombreira da porta, e nos acompanhavam durante todo o tempo que passávamos no interior, insinuando-se de tal maneira nas vizinhanças do nosso espaço cutâneo que nos esquecíamos do que íamos comprar, levando, por via das dúvidas, o dobro do inicialmente pretendido. Tudo isto ao som de uma música suave que nos fazia sentir ali melhor que no útero materno.
Aquele primeiro mês foi de festa. Ao Sr. Valadão, já só iam as velhas freguesas, que eram de facto velhas, fidelizadas tanto pela rotina como pelo caderninho do fiado. E o resto do bairro passou a passar a vida entre o Sr. Francisco e o Sr. Moniz. Já ninguém jogava à bola, já ninguém se sentava a conversar junto ao coreto. Já ninguém podia dar-se ao luxo de perder as fantásticas novidades das novas mercearias. E que novidades! Aliás, a rotina passou a ser constituída pelas novidades. Novos produtos, novos preços, novas promoções, novas empregadas, novas facilidades de pagamento – novas novidades! A pontos de a coisa se começar a tornar ligeiramente, não direi incomodativa, porque na altura não tínhamos a noção do incómodo, mas estranha. Por exemplo, de cada vez que pegávamos numa maçã para a meter no saco, éramos obrigados a interrromper a operação para ouvir dez minutos de auto-promoções às novas vantagens de fazer compras ali – fosse o «ali» o Sr. Francisco ou o Sr. Moniz. E quando largávamos a maçã para ir em busca de outras atracções sumarentas, verificávamos que não se encontravam nos escaparates, ou chegavam muito mais tarde que a hora anunciada. Ainda por cima, os velhos produtos, sensaborões, mas genuinamente portugueses e fiáveis, a que o Sr. Valadão nos habituara, eram agora substituídos por toda a casta de importações de aparências irresistíveis mas conteúdos decepcionantes. E caso se atravessasse a rua para tentar a sorte no Sr. Moniz, assim tentando passar uma mensagem subtil ao Sr. Francisco, o esforço era vão. O Sr. Moniz fazia a mesma coisa, âs mesmas horas, com as mesmas técnicas sedutoras e apelativas. E a mesma falta de qualidade mínima.
Foi então que muitos de nós decidimos voltar ao Sr. Valadão e trocar a novidade espampanante, mas vácua, pelo certo e sabido do antigamente. Mas já não havia antigamente. O Sr. Valadão fora substituído por um ex-empregado do Sr. Francisco, o Sr. Emídio, que aquele despedira por levar um pouco demasiado a peito a política de agressividade comercial. (Porque nesta altura, já estávamos a falar de agressividade comercial, com explosões ocasionais de pura e simples guerra comercial). E a mercearia original estava igualzinha às outras em tudo o que estas tinham inovado para pior (e passara a estar aberta 24 horas por dia, como as outras).
Aí eu disse «Basta». Disse «Basta», e continuei a ir às três mercearias, alternadamente, porque tinha de comer, e não havia mais nenhuma. A emergência da concorrência conseguira o feito notável de, contra todas as leis dos livros, abaixar consistentemente a qualidade. E não havia nada a fazer, excepto dizer «Basta».
Tenho umas saudades doidas de quando ficávamos a conversar sobre tudo e coisa nenhuma, aos fins de tarde, depois da bola, em cima dos bancos do jardim, junto ao coreto, debaixo do plátano grande, em vez de fazermos a nossa autista peregrinação infindável, já esquecidos do objectivo inicial, do Sr. Emídio para o Sr. Francisco, do Sr. Francisco para o Sr. Moniz, do Sr. Moniz, de volta ao Sr. Emídio, como se estivéssemos a fazer zapping na televisão.
À medida que foi crescendo a minha percepção do mundo, extravasando os doces limites das pinhoadas e pastilhas Pirata, fui sentindo que o Sr. Valadão cada vez tinha menos para nos oferecer. Poucas marcas, produtos muito próximos do fim do prazo de validade, um atendimento cortês mas demorado, pouco adequado à minha impaciência de pré-adolescente, a sugestão de irmos munidos de sacos de pano, que os de plástico eram caros – e a minha Mãe acrescentava mesmo em tom crítico que o Sr. Valadão abria às horas que queria e fazia os preços que lhe apetecia. Às vezes, dava-se até ao luxo de fechar a porta e sair por grandes temporadas, a fazer sabe-se lá o quê, deixando os clientes confrontados com uma tabuleta que dizia «Pedimos desculpa por esta interrupção – a mercearia reabre dentro de momentos.»
A mercearia do meu bairro, a única que ali algum dia existira, começava a cansar-nos.
Foi por isso que acolhemos com natural expectativa, que cedo se transformou em impaciência, e em breve redundou em ansiedade, a notícia da abertura no ano seguinte, em 1992 (lembro-me como se fosse hoje) de duas novas mercearias que iriam revolucionar o panorama do abastecimento alimentar e similares no bairro.
Que emoção, nesse 6 de Outubro, às anunciadas quatro e meia da tarde, quando finalmente abriram as mercearias do Sr. Francisco e do Sr. Moniz! Cenários de cores vivas onde antes só havia cambiantes de cinzento e beige; produtos de que nunca ouvira falar; promoções irresistíveis, e – acima de tudo – empregadas lindíssimas, produzidíssimas, que disparavam um sorriso de orelha a orelha assim que transpúnhamos a ombreira da porta, e nos acompanhavam durante todo o tempo que passávamos no interior, insinuando-se de tal maneira nas vizinhanças do nosso espaço cutâneo que nos esquecíamos do que íamos comprar, levando, por via das dúvidas, o dobro do inicialmente pretendido. Tudo isto ao som de uma música suave que nos fazia sentir ali melhor que no útero materno.
Aquele primeiro mês foi de festa. Ao Sr. Valadão, já só iam as velhas freguesas, que eram de facto velhas, fidelizadas tanto pela rotina como pelo caderninho do fiado. E o resto do bairro passou a passar a vida entre o Sr. Francisco e o Sr. Moniz. Já ninguém jogava à bola, já ninguém se sentava a conversar junto ao coreto. Já ninguém podia dar-se ao luxo de perder as fantásticas novidades das novas mercearias. E que novidades! Aliás, a rotina passou a ser constituída pelas novidades. Novos produtos, novos preços, novas promoções, novas empregadas, novas facilidades de pagamento – novas novidades! A pontos de a coisa se começar a tornar ligeiramente, não direi incomodativa, porque na altura não tínhamos a noção do incómodo, mas estranha. Por exemplo, de cada vez que pegávamos numa maçã para a meter no saco, éramos obrigados a interrromper a operação para ouvir dez minutos de auto-promoções às novas vantagens de fazer compras ali – fosse o «ali» o Sr. Francisco ou o Sr. Moniz. E quando largávamos a maçã para ir em busca de outras atracções sumarentas, verificávamos que não se encontravam nos escaparates, ou chegavam muito mais tarde que a hora anunciada. Ainda por cima, os velhos produtos, sensaborões, mas genuinamente portugueses e fiáveis, a que o Sr. Valadão nos habituara, eram agora substituídos por toda a casta de importações de aparências irresistíveis mas conteúdos decepcionantes. E caso se atravessasse a rua para tentar a sorte no Sr. Moniz, assim tentando passar uma mensagem subtil ao Sr. Francisco, o esforço era vão. O Sr. Moniz fazia a mesma coisa, âs mesmas horas, com as mesmas técnicas sedutoras e apelativas. E a mesma falta de qualidade mínima.
Foi então que muitos de nós decidimos voltar ao Sr. Valadão e trocar a novidade espampanante, mas vácua, pelo certo e sabido do antigamente. Mas já não havia antigamente. O Sr. Valadão fora substituído por um ex-empregado do Sr. Francisco, o Sr. Emídio, que aquele despedira por levar um pouco demasiado a peito a política de agressividade comercial. (Porque nesta altura, já estávamos a falar de agressividade comercial, com explosões ocasionais de pura e simples guerra comercial). E a mercearia original estava igualzinha às outras em tudo o que estas tinham inovado para pior (e passara a estar aberta 24 horas por dia, como as outras).
Aí eu disse «Basta». Disse «Basta», e continuei a ir às três mercearias, alternadamente, porque tinha de comer, e não havia mais nenhuma. A emergência da concorrência conseguira o feito notável de, contra todas as leis dos livros, abaixar consistentemente a qualidade. E não havia nada a fazer, excepto dizer «Basta».
Tenho umas saudades doidas de quando ficávamos a conversar sobre tudo e coisa nenhuma, aos fins de tarde, depois da bola, em cima dos bancos do jardim, junto ao coreto, debaixo do plátano grande, em vez de fazermos a nossa autista peregrinação infindável, já esquecidos do objectivo inicial, do Sr. Emídio para o Sr. Francisco, do Sr. Francisco para o Sr. Moniz, do Sr. Moniz, de volta ao Sr. Emídio, como se estivéssemos a fazer zapping na televisão.
3 Comments:
Felizmente, entretanto apareceu a Internet e eu comecei a fazer todas as minhas compras de mercearia online. Só mando vir mesmo aquilo que quero, às horas que quero, e não perco tempo a ver auto-promoções.
Há quem diga que os produtos são de contrabando e que alguns até são meios piratas. Mas, de facto, a comodidade de sermos donos e senhores das nossas compras não tem preço.
A concorrência aumenta a eficiência de produção e, por essa via, aumenta a quantidade. Mas não aumenta necessariamente a qualidade. Pode aumentar a diversidade, mas diversidade não é necessáriamente qualidade.
E ainda falam numa nova mercearia, do sr. Oliveira ou do sr. Fernandes. Ou será uma espécie de mercearia,bazar e loja do chinês?O sr Fernandes tem louças, papel e ferragens. Do sr Oliveira sabemos que gosa de bola e de brasileiras. Será que desta vez teremos alem das autopromoões um borda d´água em topless?haja ba(u)nda larga...
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