As Tertúlias do Casino
Ao longo do último ano, o Casino da Figueira da Foz organizou um conjunto de tertúlias para as quais convidou a nata de quem pensa em Portugal.
Algumas dessas tertúlias foram transmitidas pela televisão em programas como A Quadratura do Círculo ou o Prós e Contras mas algumas das mais interessantes passaram abaixo dos grandes radares mediáticos, tendo-se assistido a brilhantes argumentações e diálogos.
O primeiro ano de tertúlias fechou hoje com chave de ouro com uma conversa entre dois colossos do debate em Portugal: Mário Soares e Pacheco Pereira.
O debate, moderado pela não menos brilhante Fátima Campos Ferreira, que teve a inteligência de deixar fluir o debate sem procurar o protagonismo de outros moderadores foi, a todos os títulos, extraordinário. ---
O tema do debate era a Europa e o Mundo e, em lugar do mesmo debate estafado, de consensos politicamente correctos, a que se assiste nos media, defrontaram-se duas posições frontalmente opostas: Pacheco Pereira, tradicional opositor dos referendos, a defender o Referendo ao Tratado e a declarar que votaria contra. Mário Soares, que quando Presidente advogou o referendo à Europa, a opor-se ao referendo do tratado e a defender a sua ratificação imperiosa.
A posição de Pacheco Pereira era claramente mais fácil, dado que ambos começaram por concordar que o Tratado não é claro, tem sérios inconvenientes e foi o resultado de um processo de elaboração obscuro, dominado por interesses franceses e alemães. Mário Soares admitiu mesmo que, indo a referendo, provavelmente seria aprovado em Portugal por escassa maioria e seria chumbado na Europa. Tinha, assim, a tarefa mais complicada de argumentar que, apesar disso, é importante aprovar o Tratado para preservar o papel da Europa no Mundo e evitar condenar a Europa à irrelevância política de alguns países médios num mundo de superpotências (EUA, China, Índia, Rússia e eventualmente Brasil). Não me posso arrogar a pretensão de reproduzir aqui os seus argumentos que não foram fáceis mas que foram, sem sombra de dúvida, corajosos, por não apelarem às fórmulas fáceis com que Sócrates, Sarkozys e Gordon Browns nos querem vender o tratado. Em vez disso, apelou à visão de longo prazo, aos interesses da Europa num horizonte de 50, 100 anos, em que este tratado particular já poderá estar ultrapassado mas a realidade geopolítica do mundo não mudará. Fez uma analogia interessante com a partida para os descobrimentos, onde a dose de incerteza dominava mas a inevitabilidade da saída se sobrepôs ao bom senso.
Pacheco Pereira argumentou, com igual tenacidade e clareza de ideias, contra os perigos escondidos no tratado. Referiu os perigos geoestratégicos que se escondem na Europa, expôs exemplos claros e que deram que pensar.
No final, ninguém se poderia queixar de que os bons argumentos de um lado e do outro não foram expostos e bem defendidos. Foi, sem dúvida nenhuma, o melhor debate sobre o futuro da Europa a que já me foi dado assistir, dentro ou fora de portas.
Em seguida, o debate evoluiu para o futuro do Modelo Social Europeu. A discussão era um pouco anti-climáctica, depois de se terem discutido os grandes desígnios da Europa e do Mundo. No entanto, os dois tiveram o condão de elevar a discussão, fugindo de novo às formas batidas desse debate e argumentando com grande coragem, sem se preocuparem com a forma como as suas ideias se poderiam reflectir numa qualquer manchete ou num qualquer sound bite televisivo.
Pacheco Pereira defendeu a visão economista tradicional, do esgotamento do Modelo Social Europeu, em virtude da Inversão da Pirâmide Etária, da competição feroz de economias sem encargos sociais e do aumento da esperança média de vida, que desequilibra sistema de Segurança Social.
Numa tirada brilhante, Mário Soares lembrou que o grande ex-libris do Modelo Social Europeu, o SNS Britânico, foi criado numa Inglaterra arrasada pela Guerra, onde havia miséria e carências de toda a ordem mas que vingou e veio a dar origem a uma das melhores escolas médicas do mundo. Enquanto isso, numa sociedade de forte abundância, com exibições de riqueza majestosa quer-se argumentar que não há dinheiro para manter um sistema de saúde público? Se uma sociedade em ruínas o pôde pagar, porque não pode uma sociedade rica e avançada sustentá-lo.
O outro grande exemplo que deu, o pai dos sistemas de segurança social, foi o New Deal, que nasceu da Depressão, do Crash Bolsista, do colapso da economia liberal, em condições de extrema pobreza no Sul dos EUA. No entanto, esse sistema não só pôde ser financiado num país arruinado como contribuiu decisivamente para a recuperação desse país e para o seu estabelecimento como garante da democracia nos tempos incertos da Segunda Guerra.
Pacheco Pereira argumentou, por sua vez, com a nova realidade global, fruto da tecnologia, do irrealismo de querer segurar um dinheiro sem pátria, o que Mário Soares rebateu com a necessidade de moralizar esse dinheiro sem pátria, de unir os governos na criação de regulamentção de capitais, para que o mundo financeiro volte a ser o espelho da economia real que lhe está na base e não um fenómeno especulativo de dinheiro que negoceia dinheiro, sem qualquer substrato real subjacente.
Houve argumentos, e bons, para quase todos os gostos e voltou a haver um bom debate político em Portugal.
É pena é que seja preciso não haver televisões presentes na sala para que se possa promover uma discussão tão franca e aberta, em que as verdadeiras questões são discutidas e se chamam os bois pelos nomes.
Espero que haja mais anos de tertúlias destas pela frente.
Algumas dessas tertúlias foram transmitidas pela televisão em programas como A Quadratura do Círculo ou o Prós e Contras mas algumas das mais interessantes passaram abaixo dos grandes radares mediáticos, tendo-se assistido a brilhantes argumentações e diálogos.
O primeiro ano de tertúlias fechou hoje com chave de ouro com uma conversa entre dois colossos do debate em Portugal: Mário Soares e Pacheco Pereira.
O debate, moderado pela não menos brilhante Fátima Campos Ferreira, que teve a inteligência de deixar fluir o debate sem procurar o protagonismo de outros moderadores foi, a todos os títulos, extraordinário. ---
O tema do debate era a Europa e o Mundo e, em lugar do mesmo debate estafado, de consensos politicamente correctos, a que se assiste nos media, defrontaram-se duas posições frontalmente opostas: Pacheco Pereira, tradicional opositor dos referendos, a defender o Referendo ao Tratado e a declarar que votaria contra. Mário Soares, que quando Presidente advogou o referendo à Europa, a opor-se ao referendo do tratado e a defender a sua ratificação imperiosa.
A posição de Pacheco Pereira era claramente mais fácil, dado que ambos começaram por concordar que o Tratado não é claro, tem sérios inconvenientes e foi o resultado de um processo de elaboração obscuro, dominado por interesses franceses e alemães. Mário Soares admitiu mesmo que, indo a referendo, provavelmente seria aprovado em Portugal por escassa maioria e seria chumbado na Europa. Tinha, assim, a tarefa mais complicada de argumentar que, apesar disso, é importante aprovar o Tratado para preservar o papel da Europa no Mundo e evitar condenar a Europa à irrelevância política de alguns países médios num mundo de superpotências (EUA, China, Índia, Rússia e eventualmente Brasil). Não me posso arrogar a pretensão de reproduzir aqui os seus argumentos que não foram fáceis mas que foram, sem sombra de dúvida, corajosos, por não apelarem às fórmulas fáceis com que Sócrates, Sarkozys e Gordon Browns nos querem vender o tratado. Em vez disso, apelou à visão de longo prazo, aos interesses da Europa num horizonte de 50, 100 anos, em que este tratado particular já poderá estar ultrapassado mas a realidade geopolítica do mundo não mudará. Fez uma analogia interessante com a partida para os descobrimentos, onde a dose de incerteza dominava mas a inevitabilidade da saída se sobrepôs ao bom senso.
Pacheco Pereira argumentou, com igual tenacidade e clareza de ideias, contra os perigos escondidos no tratado. Referiu os perigos geoestratégicos que se escondem na Europa, expôs exemplos claros e que deram que pensar.
No final, ninguém se poderia queixar de que os bons argumentos de um lado e do outro não foram expostos e bem defendidos. Foi, sem dúvida nenhuma, o melhor debate sobre o futuro da Europa a que já me foi dado assistir, dentro ou fora de portas.
Em seguida, o debate evoluiu para o futuro do Modelo Social Europeu. A discussão era um pouco anti-climáctica, depois de se terem discutido os grandes desígnios da Europa e do Mundo. No entanto, os dois tiveram o condão de elevar a discussão, fugindo de novo às formas batidas desse debate e argumentando com grande coragem, sem se preocuparem com a forma como as suas ideias se poderiam reflectir numa qualquer manchete ou num qualquer sound bite televisivo.
Pacheco Pereira defendeu a visão economista tradicional, do esgotamento do Modelo Social Europeu, em virtude da Inversão da Pirâmide Etária, da competição feroz de economias sem encargos sociais e do aumento da esperança média de vida, que desequilibra sistema de Segurança Social.
Numa tirada brilhante, Mário Soares lembrou que o grande ex-libris do Modelo Social Europeu, o SNS Britânico, foi criado numa Inglaterra arrasada pela Guerra, onde havia miséria e carências de toda a ordem mas que vingou e veio a dar origem a uma das melhores escolas médicas do mundo. Enquanto isso, numa sociedade de forte abundância, com exibições de riqueza majestosa quer-se argumentar que não há dinheiro para manter um sistema de saúde público? Se uma sociedade em ruínas o pôde pagar, porque não pode uma sociedade rica e avançada sustentá-lo.
O outro grande exemplo que deu, o pai dos sistemas de segurança social, foi o New Deal, que nasceu da Depressão, do Crash Bolsista, do colapso da economia liberal, em condições de extrema pobreza no Sul dos EUA. No entanto, esse sistema não só pôde ser financiado num país arruinado como contribuiu decisivamente para a recuperação desse país e para o seu estabelecimento como garante da democracia nos tempos incertos da Segunda Guerra.
Pacheco Pereira argumentou, por sua vez, com a nova realidade global, fruto da tecnologia, do irrealismo de querer segurar um dinheiro sem pátria, o que Mário Soares rebateu com a necessidade de moralizar esse dinheiro sem pátria, de unir os governos na criação de regulamentção de capitais, para que o mundo financeiro volte a ser o espelho da economia real que lhe está na base e não um fenómeno especulativo de dinheiro que negoceia dinheiro, sem qualquer substrato real subjacente.
Houve argumentos, e bons, para quase todos os gostos e voltou a haver um bom debate político em Portugal.
É pena é que seja preciso não haver televisões presentes na sala para que se possa promover uma discussão tão franca e aberta, em que as verdadeiras questões são discutidas e se chamam os bois pelos nomes.
Espero que haja mais anos de tertúlias destas pela frente.
Etiquetas: Casino Figueira da Foz, Mário Soares, Pacheco Pereira, Tertúlias
4 Comments:
tenho pena de não ter assistido. especialmente se foi equilibrado. O último e único debate que assisti entre os dois, julgo que no Prós e Contras, foi sobre a os EUA e a Guerra do Iraque. Soares estava em clara vantagem no tema mas ficou bem evidente que, apesar da experiência, não tem "bagagem" intelectual para o Pacheco Pereira.
Fátima Campos Ferreira, excelente? Deixe-me rir!
Desde quando um(a) jornalista que faz fretes ao poder é excelente?
Caro Anónimo.
Eu não avalio o desempenho profissional dela na televisão porque não costumo sequer ver o programa. Já a vi duas vezes ao vivo, porém, uma perante as câmaras e outra sem câmaras.
O que lhe posso dizer é que:
-Ao contrário da maior parte dos colegas, estuda os dossiers e fala com conhecimento em áreas que lhe são estranhas.
-Quando o debate está a fluir, não o interrompe para chamar a si o protagonismo ou pôr as suas opiniões.
Quanto aos fretes que ela faz ou não faz, não tenho dados para me pronunciar. Do que eu vi, gostei.
Cada um come do que gosta mesmo que não haja abundância.
Ponto é que os personagens referidos não têm suficiente craveira para ser considerados de "colossos" ou de apelidar de "brilhante" e "inteligente" a uma jornalista que, não o sendo efectivamente, anda a cobrar bem demais ao desgoverno que temos.
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