O Homem que Fez um Leasing da Alma ao Diabo
O homem da gravata encarnada flamejante tinha um encanto todo especial, difícil de definir, impossível de resistir. Os seus modos calmos, mas determinados, pareciam esconder um poder sem vontade de se revelar, mas apenas dominar. ---
E dominado estava o seu interlocutor, copo de Cardhu rodando nos dedos, ali no bar do Lux, Brand Manager da Unilever, com uma carreira de agilização de vendas e conquista de quotas no campo das pastas dentríficas, gelados, lasanhas pré-preparadas e outros derivados do petróleo. Se alguém conhecia as técnicas para melhor cativar o consumer e suscitar-lhe a indispensável good will que faz subir os gráficos de vendas como najas hipnotizadas pela música da encantador, era ele. Porque deixava então que os papéis se invertessem, assumindo o papel passivo? E ali estava, abrindo-se como um livro ao seu interlocutor, desconhecido até há meia hora, falando de religião, da sua religião, enfim, da sua forma de ver a religião.
– Sou católico. Quer dizer, não vou à missa ao domingo e isso, quer dizer, vou de vez em quando, não sou é dado a liturgias, acho que cada um tem a sua maneira de ver, e sou um espírito demasiado independente para me deixar arrebanhar, não sei se está a ver, mas respeito quem pensar diferente de mim – dizia, mas bebendo as palavras que esperava ver sair a todo o momento dos lábios finos do homem da gravata encarnada, buscando concordância. – Basicamente, acredito que há qualquer coisa para além disto tudo, depois de morrermos, não sei bem o quê, mas creio nisso... creio eu.
O homem da gravata ia assentindo com movimentos quase imperceptíveis da cabeça, a gravata sempre um foco incandescente que parecia queimar a retina de quem nela pousasse inadvertidamente o olhar.
– Você veja, eu estou bem na vida. Tenho uma mulher linda, dois filhos, saúde de ferro, casuncha com piscina, Volvo 4x4, monte no Alentejo, viagens, carteira de acções, PPRs, o diabo a sete – prosseguiu. Às suas últimas palavras, pareceu-lhe detectar um relampejo nas íris azuis-claras do seu companheiro de copos. – Não podia estar melhor na vida. Mas, e depois da vida? Não sei. E se calhar é por isso que sou católico. – Fez uma pausa entre pensativa e enfática. – Não é por isso que somos todos católicos? Quer dizer, há assim uns gajos como o... o... como é que o gajo se chama, o gajo que era pintor e poeta... que são ateus, acho que esse gajo era ateu, já não sei... e os comunas, claro. Mas um gajo normal, um gajo como eu, habituado a ser proactivo, a fazer cenários, gosta de ter um plano B, não sei se está a ver... – Nova pausa. – Mas at the end of the day, um gajo quer é segurança. E não sei se o que eu faço chega. Será que há vida eterna? Se há, vai durar um porradão de tempo. E se for preciso ser santo? Não, não se ria, imagine que é mesmo preciso ser santo? Tipo, radical? Eu faço muito o paralelo com a minha carreira. Eu não cheguei onde cheguei, e note que ainda só tenho 34 anos, a dormir na forma. Virei muitas noites a fazer planos de marketing, passei muitos fins-de-semana em formação, sei lá... E se o Paraíso for assim, admitindo que existe? Se só entram os gajos que têm boas notas na avaliação do chefe? – Interrompeu-se de novo, desta vez absorto nas suas interrogações, esquecendo-se por momentos do escrutínio silencioso do seu interlocutor. – Não haverá um caminho mais fácil? Às vezes, pergunto-me o que faria se me aparecesse aí o Diabo a propor-me vender-lhe a alma, sabe, como o Pacino ao outro gajo, era o Brad Pitt, não era?, o que é que eu fazia. E lá está. Um gajo não sabe como vai correr, aquilo é o que eu chamo um negócio de alto risco. E eu gosto de saber o que compro. O preço não interessa, mas o produto é tudo. Palavra de Brand Manager. Uma estratégia conservadora, embora de baixo pay-off, ou arriscar tudo no vermelho...
Interrompeu-se por momentos, bebericando o Cardhu, procurando qualquer eco das suas palavras na expressão esfíngica do homem da gravata encarnada. Que sorria, atento, olhos nos olhos, com um sorriso de quem já passou por tudo na vida e decide consigo próprio partilhar ou não a sua experiência com o comum dos mortais. Finalmente, os lábios do gravata entreabriram-se. E disseram baixo, lentamente, quase sussurrando:
– Tem outras alternativas, para além de vender a alma ao Diabo.
– Como assim, outras alternativas?
– Se o seu problema é não ter a certeza se vai gostar do produto, em vez de comprar, faça um leasing!...
Bela blague, pensou o Brand Manager para com os seus botões de punho Cartier. Mas o que significava? Porque tudo o que o seu interlocutor dizia, o pouco que dizia, parecia ter um sentido oculto, mas irresistível, oferecendo-se exclusivamente à perspicácia dos mais dotados.
– Um leasing?!?
- Pois, um leasing. Não venda a alma ao diabo. Faça o que já faz. Compre a vida eterna às prestações, de acordo com um plano estabelecido por si próprio. Você tem saúde, sabe a sua esperança de vida, pode calcular, mais ano, menos ano, quando vai deixar este mundo, que seja mais tarde que cedo, e pagar as suas prestações – vá à sua missa de vez em quando, compre uns postais da UNICEF, acentue a componente de responsabilidade social da sua empresa – , e ao mesmo tempo vai gozando os prazeres da vida – o seu golfe, as suas viagens, os seus Cardhus aqui no Lux. Uma vida nisto, pagamentos tão suaves que não dá por eles. Chega ao fim, desculpe a crueza, e já tem mais a noção. Paga o valor residual: começa a ir um pedaço mais à missa, ajuda mais umas obras, até pode rezar. E fica com o melhor de dois mundos.
O gravata encarnada deteve-se, a apreciar o efeito das suas palavras no homem do marketing. Finalmente: – O que acha da minha ideia?
– Diabólica!
À saída, depois de se despedir do fantástico companheiro dessa noite, e carregar no comando da Volvo, ainda absorto nas palavras enigmáticas e no leasing a 50 anos que estava decidido a fazer, sentiu bruscamente, gélida, a faca a vincar-lhe o pescoço. Abruptamente arrancado à sua fantasia, antes sequer de o seu assaltante lhe apresentar as suas reivindicações, resistiu, a lâmina seguiu o seu caminho, e ele ali ficou, esvaíndo-se numa poça pastosa de glóbulos.
O Brand Manager continua Brand Manager. Está há uma eternidade no mesmo lugar, como que ardendo em fogo lento, mas o que é que se há-de fazer?
11 Comments:
Vou já vender a Volvo Cross Country e comprar uma Audi All Road!
Já agora, muda do Cardhu para Vat 69...
O texto, um pouco mais desenvolvido, dava um conto. Não de fadas, mas diabólico...
Não gostei do final. Vou pensar sobre o assunto.
Ficamos a saber que a Marta tem 34 anos, é Brand Manager da Unilever, não há meio de ser promovida, e veste roupas de homem, tendo até hoje conseguido ludibriar os colegas relativamente ao seu género sexual.
Temos um mau perdedor!!!! Não consegue encaixar a crítica (altamente construtiva, aliás...)!
eh eh eh bom jogo de cintura, Marta!
Parabéns, Jorge: um brutal soco na barriga do Diabo. E não só!
Obrigada, Jorge.
Obrigado, João, mas não subestimemos o Chifrudo. Abraço!
Anónima das 12:58. Obrigado eu.
Discordo completamente. Do que mais gostei foi do final. E do Leasing. Acho que andamos todos nessa. Uns com produtos melhores que outros, claro...
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