
Uma Câncio a Mais
Sobre o manifesto de Fernanda Câncio no DN contra os alegados privilégios concedidos pelo Estado aos capelães católicos, já vários Incontinentes comentaram com o brilhantismo habitual. Destaco, não desfazendo, uma ideia do ZLM com a qual me identifico em grande parte, enquanto católico: faz parte da natureza intrínseca da Igreja Católica ser torpedeada pelos poderes e potestades, visto que o seu fundador começou por dizer, preto no branco, lapidares como «O meu Reino não é deste mundo», ou «A César o que é de César». A Igreja sempre se deu mal quando apaparicada por homens de armas, em conúbio supostamente vantajoso para ambas as partes, e até se pode defender que na génese da sua oficialização por Constantino - por motivos porventura mais temporais que espirituais - residem alguns dos seus vícios futuros. Mas adiante. A Igreja prova que é uma entidade viva quando, ao longo de 2000 anos de história com os seus podres, foi no essencial a última linha na defesa dos pobres e ofendidos. Por cada Papa corrupto houve milhares de franciscanos que cuidaram das chagas e da lepra dos seus irmãos. E não pode ser por acaso que, após perseguições sanguinárias, sempre se tenha levantado mais forte.
Dito isto, sempre houve também, embora com maior intensidade desde os tempos ditos iluministas, os que combateram o alegado ópio do povo proclamando a supremacia da razão humana. Desempenharam o seu papel, nomeadamente questionando o resvalar da Igreja para o colo do poder, mas, hélàs!, inebriaram-se da sua autosuficiência, e o resultado é conhecido: essa revolução sacralizada de 1789, e o propósito de eliminar a dissidência, com os milhões de exemplos vivos, isto é, mortos, onde quer que tenha sido levada às últimas consequências do socialismo real.
Algum socialismo percebeu as lições da história, e renegou aparentemente a autocracia, mas nunca perdeu o tique directivo e impositivo, regulador e proselitista. Os arautos da nova religião da não-religião, que em França continuam a ter o seu berço, só aparentemente defendem a igualdade dos credos. Como realça a Mafalda no seu post, querem nivelar por baixo, acabando igualitariamente com todos, e ensinar o povo a tomar o seu destino em mãos, em vez de se entregar aos vapores alienantes do ópio.
Ora, mesmo quem se bata existencialmente por uma sociedade mais justa, e denuncie a opressão da dignidade humana, de onde quer que venha essa denúncia - e este escriba, por exemplo, subscreve as denúncias de Karl Marx, desde que se fiquem pela Inglaterra recém-industrializada do capitalismo selvagem - percebe que a mudança não se faz por decretos, mas dentro do coração humano. E por isso, a a visão do mundo dos arautos do laicismo mais radical é triste. Declinam acudir ao exemplo concreto do desvalido, para não substituirem as leis através da prática da caridadezinha. Reservam toda a responsabilidade de mudar o mundo aos eleitos da nação e negam a acção dos que, silenciosamente, sem que uma mão saiba o que faz a outra, metem mãos à obra enquanto as leis não concretizam as epifanias que levarão a sociedade avante camarada avante.
Fernanda Câncio, Você é triste. Senta-se no seu cocuruto no DN e julga que vê mais longe. E ignora ostensivamente, porque cego maior é a que não quer ver, a acção dos 193 capelães que decreta arrogantemente estarem a mais. Mas não é Você que está à cabeceira do preso que, encerrado num hospital-prisão, coitado, ignorante, alienado, vítima do obscurantismo difundido pela padralhada, se volta para a religião como ponto cimeiro de esperança no meio do seu sofrimento. Quem lá está é o capelão, percebe? Ou, se quiser, é também o capelão, para além do funcionário que algumas vezes, felizmente nem sempre, não tem o suplemento de alma para correr a «extra mile». Estes 193, e já agora os milhares de voluntários católicos (e de outras religiões, mas em números muito inferiores, que quer?) que anonimamente, se entregam à «caridadezinha». Imagino que lhe façam pele de galinha, mas sabe que mais? Aqueles que eles e elas visitam gostam. E pedem a sua visita. Pode ser que Você consiga acabar com eles por uns tempos, especialmente agora que o PSD vos parece querer entregar o poder mais uma legislatura para se entregarem aos vossos desmandos zapateristas. Mas mesmo que consigam pôr a andar aqueles que acreditam que o Estado não é tudo, não será por muito tempo. É que eles acreditam no que fazem. E de vez em quando também ganham eleições. E fazem petições, e berram, e escrevem em blogues. (Ou Você pensava que estavam todos nas sacristias?) E sobretudo, acreditam que nem só de pão vive o Homem.
2 Comments:
Brilhante, caro Jorge.
Brigados, caro João... J
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