domingo, setembro 30, 2007

Uma Câncio a Mais

Sobre o manifesto de Fernanda Câncio no DN contra os alegados privilégios concedidos pelo Estado aos capelães católicos, já vários Incontinentes comentaram com o brilhantismo habitual. Destaco, não desfazendo, uma ideia do ZLM com a qual me identifico em grande parte, enquanto católico: faz parte da natureza intrínseca da Igreja Católica ser torpedeada pelos poderes e potestades, visto que o seu fundador começou por dizer, preto no branco, lapidares como «O meu Reino não é deste mundo», ou «A César o que é de César». A Igreja sempre se deu mal quando apaparicada por homens de armas, em conúbio supostamente vantajoso para ambas as partes, e até se pode defender que na génese da sua oficialização por Constantino - por motivos porventura mais temporais que espirituais - residem alguns dos seus vícios futuros. Mas adiante. A Igreja prova que é uma entidade viva quando, ao longo de 2000 anos de história com os seus podres, foi no essencial a última linha na defesa dos pobres e ofendidos. Por cada Papa corrupto houve milhares de franciscanos que cuidaram das chagas e da lepra dos seus irmãos. E não pode ser por acaso que, após perseguições sanguinárias, sempre se tenha levantado mais forte. ---
Dito isto, sempre houve também, embora com maior intensidade desde os tempos ditos iluministas, os que combateram o alegado ópio do povo proclamando a supremacia da razão humana. Desempenharam o seu papel, nomeadamente questionando o resvalar da Igreja para o colo do poder, mas, hélàs!, inebriaram-se da sua autosuficiência, e o resultado é conhecido: essa revolução sacralizada de 1789, e o propósito de eliminar a dissidência, com os milhões de exemplos vivos, isto é, mortos, onde quer que tenha sido levada às últimas consequências do socialismo real.
Algum socialismo percebeu as lições da história, e renegou aparentemente a autocracia, mas nunca perdeu o tique directivo e impositivo, regulador e proselitista. Os arautos da nova religião da não-religião, que em França continuam a ter o seu berço, só aparentemente defendem a igualdade dos credos. Como realça a Mafalda no seu post, querem nivelar por baixo, acabando igualitariamente com todos, e ensinar o povo a tomar o seu destino em mãos, em vez de se entregar aos vapores alienantes do ópio.
Ora, mesmo quem se bata existencialmente por uma sociedade mais justa, e denuncie a opressão da dignidade humana, de onde quer que venha essa denúncia - e este escriba, por exemplo, subscreve as denúncias de Karl Marx, desde que se fiquem pela Inglaterra recém-industrializada do capitalismo selvagem - percebe que a mudança não se faz por decretos, mas dentro do coração humano. E por isso, a a visão do mundo dos arautos do laicismo mais radical é triste. Declinam acudir ao exemplo concreto do desvalido, para não substituirem as leis através da prática da caridadezinha. Reservam toda a responsabilidade de mudar o mundo aos eleitos da nação e negam a acção dos que, silenciosamente, sem que uma mão saiba o que faz a outra, metem mãos à obra enquanto as leis não concretizam as epifanias que levarão a sociedade avante camarada avante.
Fernanda Câncio, Você é triste. Senta-se no seu cocuruto no DN e julga que vê mais longe. E ignora ostensivamente, porque cego maior é a que não quer ver, a acção dos 193 capelães que decreta arrogantemente estarem a mais. Mas não é Você que está à cabeceira do preso que, encerrado num hospital-prisão, coitado, ignorante, alienado, vítima do obscurantismo difundido pela padralhada, se volta para a religião como ponto cimeiro de esperança no meio do seu sofrimento. Quem lá está é o capelão, percebe? Ou, se quiser, é também o capelão, para além do funcionário que algumas vezes, felizmente nem sempre, não tem o suplemento de alma para correr a «extra mile». Estes 193, e já agora os milhares de voluntários católicos (e de outras religiões, mas em números muito inferiores, que quer?) que anonimamente, se entregam à «caridadezinha». Imagino que lhe façam pele de galinha, mas sabe que mais? Aqueles que eles e elas visitam gostam. E pedem a sua visita. Pode ser que Você consiga acabar com eles por uns tempos, especialmente agora que o PSD vos parece querer entregar o poder mais uma legislatura para se entregarem aos vossos desmandos zapateristas. Mas mesmo que consigam pôr a andar aqueles que acreditam que o Estado não é tudo, não será por muito tempo. É que eles acreditam no que fazem. E de vez em quando também ganham eleições. E fazem petições, e berram, e escrevem em blogues. (Ou Você pensava que estavam todos nas sacristias?) E sobretudo, acreditam que nem só de pão vive o Homem.

2 Comments:

Blogger João Távora said...

Brilhante, caro Jorge.

10/01/2007 1:05 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Brigados, caro João... J

10/01/2007 1:35 da tarde  

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