domingo, agosto 12, 2007

De que vale ter tudo

Tinha tudo, tudo
sem peso nem conta,
bragas de veludo,
peliças de lontra.
Um homem tão grande
tem tudo o que quer.
O que ele não tinha
era um fecho éclair.

António Gedeão (a propósito de Filipe II)


É um dos dogmas incontestados da actual teoria económica que a economia tem de crescer o mais que puder, custe o que custar.
Maior crescimento traz mais riqueza, mais bens de consumo, mais conforto. Por isso, ganha quem crescer mais.
Penso que não haverá já hoje discussão de que o sistema capitalista puro é o sistema que garante melhores taxas de crescimento. Os chamados países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), tradicionalmente economias muito protegidas, cairam no capitalismo mais desregrado e têm observado taxas de crescimento sustentadas de 10% ao ano. Parecia ser o fim da história ideológica. A direita venceu a esquerda, o capitalismo venceu o comunismo, o socialismo e a social democracia.
Essa visão, porém, é uma visão míope, pois olha só para os números agregados e não olha para as situações particulares. É a velha história dos dois amigos em que um come um frango e o outro fica a vê-lo. Em média comeram meio frango cada um mas, na prática, um deles ficou com muita fome (e o outro, presume-se, com indigestão).
Comecemos então por interrogar os fundamentos do dogma. Para que serve o crescimento? Até há pouco tempo, poderia dizer-se que serve para matar a fome no mundo. Porém, desde a revolução verde dos anos 60, alimentar o mundo deixou de ser uma questão económica para ser uma questão política. Hoje há fome no mundo apenas onde a má fé dos políticos faz com que haja fome, por ser uma arma muito eficaz contra povos que se quer controlados. Na verdade, desde há pouco tempo o número de obesos no mundo superou o número de famintos. Em média a humanidade já come mais do que devia. É claro que ainda há quem veja, de barriga vazia, os outros a comer o frango. Mas já não é porque o frango não existe. É apenas porque a sua distribuição não é equitativa. Portanto, a economia mundial produz comida mais do que suficiente para alimentar a população e até a tornar obesa. Não é esse o motivo que justifica o maior crescimento económico.
O motivo poderia ser, em alternativa, garantir outras necessidades básicas à população mundial, como cuidados médicos e educação. Infelizmente, não é a isso que se tem vindo a assistir. Nos países desenvolvidos, a qualidade dos cuidados médicos está a tornar-se cada vez acessível a um menor número de pessoas. 14% da população dos EUA não tem qualquer tipo de cobertura médica. Em Portugal, a medicina privada é acessível a uma pequena fatia da população e a medicina pública assiste a cortes brutais que tentam conter um número crescente de gastos. No entanto, o aumento desses gastos não se traduz em mais saúde e melhores acessos. Traduz-se, isso sim, em ordenados mais altos dos profissionais de saúde (para acompanhar o crescimento económico), em medicamentos cada vez mais dispendiosos e em diagnósticos cada vez mais caros. O número de populações servidas por serviços médicos de proximidade, esse, baixa todos os dias.
A educação dos países desenvolvidos conhece um dos seus piores momentos. Neste momento, a infraestrutura científica e tecnológica mantém-se com recurso massificado à mão de obra formada nos antigos países comunistas da Europa de Leste, da China e na economia antes protegida da Índia. Quando esses países, mercê do seu enriquecimento, cairem no facilitismo educacional dos países actualmente desenvolvidos, haverá uma séria crise de mão de obra qualificada.
Esta degradação dos serviços públicos de educação e saúde não se deve, ao contrário do que se pensa, a um desinvestimento nessas áreas (apesar dos cortes tão visíveis). Deve-se, simplesmente, a um fenómeno generalizado de degradação dos serviços públicos que não conseguem competir, em ordenados, com o crescimento do sector privado. O crescimento económico continuado permite ao sector privado pagar ordenados sempre mais aliciantes que são depois absorvidos numa maior produtividade económica. O fecho éclair que não era acessível a Filipe II por dinheiro nenhum do mundo, produz-se hoje por poucos cêntimos. Os lucros que daí advieram permitiram aumentar os salários de operários, quadros e vendedores, possibilitando a expansão económica do sector privado.
Infelizmente, os serviços públicos não beneficiam dessas mesmas poupanças de escala e pouco ou nada puderam fazer para aumentar a produtividade dos seus trabalhadores. Os médicos deixaram de fazer visitas ao domicílio mas pouco mais puderam fazer para aumentar o número de doentes que vêem num dia de trabalho. Os professores continuaram a ensinar as mesmas turmas de 30 alunos. No entanto, esses profissionais quiseram acompanhar os rendimentos dos seus colegas do sector privado e, assim, os custos por cidadão servido aumentaram drasticamente com o crescimento da economia. Hoje, a profissão de professor está fortemente degradada no seu prestígio apesar de os professores custarem mais ao estado do que alguma vez custaram. Os profissionais de saúde optam cada vez mais pelo sector privado, onde cobram taxas que nem todos podem pagar porque, no estado, apesar do aumento brutal das despesas com pessoal, o seu rendimento não acompanha as suas ambições e o esforço que puseram na carreira.
Assim, o crescimento económico é um crescimento do consumo privado e não do consumo público que está cada vez mais espartilhado entre necessidades crescentes e custos cada vez mais elevados.
O que é que cresce então? Cresce o número de automóveis que provocam um aumento exponencial do consumo de combustível e da emissão de gases de efeito de estufa. Cresce o número de aparelhos domésticos para cobrir toda e qualquer necessidade, verdadeira ou imaginária. Crescem os gastos com o lazer (televisão, música, computadores, consolas de jogos, casas de férias). Cresce o consumo alimentar mais comercial, com comidas hiper-processadas e embaladas.
E, para cobrir todas essas necessidades, crescem os ordenados, tornando certas profissões de mão de obra intensiva (educação e saúde) inacessíveis ao comum dos mortais.
Mas há ainda outra coisa que cresce: a desigualdade. Numa economia liberal, os rendimentos crescem, em média, mais do que nos restantes sistemas económicos. Mas não crescem de forma igual. Deixam, frequentemente, para trás parcelas significativas da população cujo temperamento não as predispõe para a competição sem quartel, cuja educação não as preparou para os desafios de uma economia sem regras, cuja saúde não lhes permitiu acompanhar a produtividade crescente dos seus vizinhos. Não havendo serviços públicos para amparar essas faixas de população, elas deixam-se ficar para trás. Caem na marginalidade, nos guetos. A economia, como um todo, andou mais depressa. Mas fê-lo, essencialmente, à custa de alguns que ficaram muito mais ricos e não à custa de todos que ficaram um pouco mais ricos. No final, todos ficamos um pouco piores. Alguns estamos mais ricos mas vemos a pobreza à nossa volta. Não nos sentimos seguros. Outros ficam mais pobres. E não é que não estejam melhores do que os seus pais. De facto, até têm o fecho éclair que faltava a Filipe II. Mas, comparativamente, estão piores. Vêem os outros consumir aquilo que lhes é inacessível. Vêem os filhos dos outros ter aquilo que não podem dar aos seus próprios filhos e que, por mais fútil que seja, faz as crianças sentirem-se excluídas. E gera-se mal estar e incompreensão social.
Ao mesmo tempo, a natureza é explorada a um ritmo demasiado intenso para poder ser sustentável. Consomem-se recursos não renováveis. Destroe-se natureza que não regressa. Tudo em nome de um crescimento económico que impera sobre tudo o resto.

Por isso, a esquerda de hoje tem esse desafio: alterar as regras do jogo. Não deve tentar competir com a direita no crescimento económico pois é uma batalha perdida à partida. As soluções de direita hão-de sempre garantir mais consolas de jogos, mais Big Macs, mais carros de alta cilindrada do que as soluções de esquerda. Mas hão-de simultaneamente condenar a saúde pública a uma morte lenta e agonizante, o ensino público a uma deterioração e a um desprestígio inevitáveis.
A esquerda tem de se bater por um menor crescimento ou até por uma estabilização económica, não prescindindo de serviços públicos de qualidade, de bons serviços de saúde, de boas escolas, de bons transportes públicos. A mim, pessoalmente, não me aborrece nada que o estado gaste mais de 50% do PIB, pois acho as despesas do estado em saúde, educação e transportes mais importantes do que as despesas privadas em televisões de ecrã plano, carros topo de gama e casas de férias em áreas protegidas. Se investirmos no lixo, teremos as casas cheias de lixo. Se investirmos em saúde e educação, teremos um futuro promissor.

11 Comments:

Anonymous Anónimo said...

"A mim, pessoalmente, não me aborrece nada que o estado gaste mais de 50% do PIB, pois acho as despesas do estado em saúde, educação e transportes mais importantes do que as despesas privadas em televisões de ecrã plano, carros topo de gama e casas de férias em áreas protegidas."
Mas a mim aborrece-me, e é aí que começa o drama da esquerda e daqueles que a ela ficam sujeitos. Não é possível conciliar esquerda e liberdade, porque a acção da primeira pressupõe a restrição das liberdades individuais (e consequentemente da responsabilidade); usurpar o dinheiro alheio é um ataque à propriedade e liberdade do indivíduo, e isto é um facto incontornável. Tu podes não querer gastar o teu dinheiro em carros, mas respeita quem o pretenda fazer.

(E sobre essa hitória de Big Macs e carros de alta cilindrada, sugiro-te o livro "The Existential Pleasures of Engineering", uma obra com uns anitos em cima mas ainda muito actual. Penso que o livro te vai irritar um pouco, não sei. Mas com certeza lhe reconhecerás méritos, e se calhar até podias traduzi-lo. Isso sim, era serviço público.)

8/12/2007 9:07 da tarde  
Blogger José Luís Malaquias said...

A liberdade a que CMF se refere é apenas uma ilusão. Acreditamos ter muita liberdade de gastarmos onde quisermos mas acabamos a gastar nos sítios onde campanhas de marketing milionárias nos mandam gastar. Estudo económico após estudo económico têm mostrado que as pessoas optam por produtos piores e mais caros porque campanhas publicitárias maciças a isso as convencem.
Depois, a pressão de consumir é tanta que consomem antes de terem poder económico para tal e recorrem ao crédito. Ficam enredadas numa teia de dívidas e juros por pagar que acabam por andar a pagar os mesmos impostos que pagariam com a esquerda. Só que estes pagam-nos a bancos privados, sob a forma de juros, dos quais nunca tirarão benefícios. E quem é pobre fica mais pobre e quem é rico fica mais rico.
De que serve tanta liberdade quando não se tem saúde ou quando não se tem educação? Serve para criar uma enorme pasta cinzenta que se move ao sabor das campanhas que lhes mandam comprar o champô A ou ir torcer pela equipa de futebol B, em campanhas onde aparecem imagens com figuras inatingíveis que nem as próprias modelos que posaram alguma vez sonharão conseguir.
A verdadeira liberdade é aquela que emerge de uma população educada e com saúde, à qual nenhum sonho é impossível de atingir. Se não fosse assim, porque é que as empresas que constituem a frente de onda da vaga capitalista teriam necessidade de ir buscar os seus talentos à China, à Índia, à Rússia, aos países de leste. Pegue-se numa revista de engenharia internacional e vejam-se os nomes: Zhu Zhiao, Koracev, Rahalastra. Os Smith, os Dupont, os Heidelberg quase que desapareceram. Na Europa e nos Estados Unidos todos querem ser estrelas de TV, vencer no American Idol ou criar uma empresa de design. Cursos como a física, a química, as engenharias, estão às moscas e os que lá andam são, regra geral, muito fracos. As empresas ocidentais não podem crescer mais não é por falta de mercado ou por falta de capital. É unicamente por não poderem captar talentos entre uma população que está maioritariamente estupidificada. Essa é a falta de liberdade que mais me assusta: é aquela falta de liberdade em que as pessoas nem sequer se apercebem de que estão presas, agrilhoadas à estupidez.

8/12/2007 10:31 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

"Acreditamos ter muita liberdade de gastarmos onde quisermos mas acabamos a gastar nos sítios onde campanhas de marketing milionárias nos mandam gastar. Estudo económico após estudo económico têm mostrado que as pessoas optam por produtos piores e mais caros porque campanhas publicitárias maciças a isso as convencem.
"
Isso meu, caro Zé Luís, é, quer tu queiras quer não, exercício de liberdade. Olhar para os outros com condescendência é o típico sintoma da superioridade moral que a esquerda se arroga. Onde é que tu encontras legitimidade para criticar as escolhas dos outros? O mundo não é como o idealizamos, mudamos o mundo. Só que isto, no passado, foi a receita para a desgraça. Os homens serão sempre homens, com todas as virtudes e defeitos. Querer transformá-los em Homem acaba sempre por ser o grande objectivo da esquerda, seja ela marxista ou mais moderada. E a melhor forma de justificar as restrições à liberdade é fazer como tu fazes e negar a existência dessa liberdade. Lamento, mas eu não compro.

(Sobre paternalismo, condescendência e comiseração escrevi há pouco tempo um texto que acaba por ter muito a ver com essa tua posição: http://nafarricos.blogspot.com/2007/07/ainda-roma-de-martin-parr.html)

(Quanto à putativa fraqueza da ciência feita nos E.U.A, deves estar a falar de um mundo diferente daquele no qual eu vivo.)

8/12/2007 10:54 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Creio que você, Malaquias, anda a confundir conceitos, em particular entre esquerdas e direitas, o que hoje em dia não tem razão de ser nem significado.
Como de costume, nem valerá a pena comentar o seu longo texto, sendo certo que muito do que você diz é sentido, e de que maneira, pelo povo, ou melhor, por todos nós. Incluindo você, a não ser que esteja colocado nos altos níveis do rebanho socialista.
Será demagogia?
A grande questão é que chegámos a este beco - terá saída? - justamente porque a esquerda se assenhoreou do poder, em Portugal, desde o desastroso 25 de Abril. Desde essa data, não há nada - mas nada - a não ser esquerda e, presentemente, essa esquerda é, no mínimo totalitária.

...

8/13/2007 8:35 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Este "três pontinhos" é uma comédia!

8/13/2007 5:30 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Dá vontade de dizer que os supostamente ricos deveriam contribuir para que os supostamente pobres não fossem assim tão pobres, para que houvesse equilíbrio e não condomínios no meio de guettos. Mas já existe alguma coisa assim, já contribuímos para a Saúde, para a Educação e para o ordenamento do todo e de todos: o sistema chama-se Estado. O problema é que não funciona.

8/13/2007 6:30 da tarde  
Blogger José Luís Malaquias said...

Nâo poderia estar mais em desacordo com a Marta. O problema do estado não é não funcionar, é que cada vez esperamos mais dele e damos por assumidas coisas que o estado nos garante. Mas nem sempre foi assim. Antes de os países ocidentais terem um sistema de segurança social, o problema da pobreza era endémico e generalizado. Fatias enormes da população viviam na mais abjecta pobreza. A segurança social deu-lhes a mão, transformou-os em cidadãos produtivos e consumidores e a sociedade como um todo deu um salto em frente.
As sociedades oligárquicas, pelo contrário, mantiveram bolsas de riqueza estagnada, rodeadas por oceanos de pobreza.

8/13/2007 9:59 da tarde  
Blogger L. Rodrigues said...

Ainda não percebi bem porquê, mas um dos sinais mais claros de que uma pessoa é de direita, é a afirmação de que "direita e esquerda já não fazem sentido".

8/14/2007 12:01 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Para já, o António Gedião chamava-se Rómulo de Carvalho. Foi meu professor de liceu e conversávamos muito, todos os dias (no caminho para casa), e com alguns condiscípulos, porque, ainda por cima, era meu vizinho num prédio fronteiro ao meu. Era simpático para os meu 15 anos.
Depois, esse meu professor era um "salazarista" confesso pelo que, na minha juventude, tínhamos várias discussões a respeito da validade do "Estado Novo". Ele era o professor, eu estava contra, mas hoje - peço-lhe perdão - ententendo-o e bem, estando o mais possível a favor. Afinal, não foi um mau professor.
Muitos colegas brincávamos justamente por causa disso. Hoje, esses colegas estão nas cátedras e em outros lugares de topo de que depende, e muito, a saúde, para não referir outras áreas nas quais muitos de nós - agora velhinhos - contribuimos e, graças a Deus, continuamos a dar a nossa - que não a minha - valiosíssima contribuição.
Quase todos, senão todos, acabámos por entender que, afinal, o Rómulo - entre outros - tinha razão.
De todos esses colegas houve uma excepção notável pela carreira de sucessos que teve até chegar a presidente desta república.
Pois...

8/14/2007 7:11 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Importa acrescentar que muitas das cátedras referidas foram afastadas depois da malvada "abrilada" que nos calhou em sorte. Porém, todos trabalham para o bem da Nação mesmo sabendo que os seu méritos não são reconhecidos.
E há que os louvar porque muitos acharam por bem afastar-se da penúria em que os revolucionários converteram a Pátria.
Não para me desculpar, aceito de coração aberto a atitude que tomaram.
É muito difícil admitir a situação actual.

...

8/14/2007 7:31 da manhã  
Blogger L. Rodrigues said...

Comentando o post propriamente dito, considero a questão, mais do que válida, urgente. O imperativo do crescimento é uma falácia usada para impor as regras que favorecem a captura de riqueza. É sempre tempo de crescer, e o bem comum que o capitalismo/liberalismo promete emergir "no longo prazo", fica permanentemente adiado.
Nunca é boa hora para distribuir a riqueza: Se há crise é para sair dela, se não há é para não a provocar, se há crescimento não se pode travá-lo.
Por isso o BCE continua a falar de contenção salarial, e planeava continuar a subir as taxas de juro. Mas agora que há uns banqueiros em apuros, já reconsideraram...

8/14/2007 2:33 da tarde  

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