segunda-feira, junho 25, 2007

Aborto e Pena de Morte

Recentemente, estalou uma forte controvérsia nos EUA, o segundo país com maior número de execuções de penas de morte, relativamente ao papel dos médicos na realização dos procedimentos que conduzem à eliminação de um prisioneiro condenado.
Este post foca um tema que não é nada agradável de ler ou escrever mas raramente temas que envolvam a morte intencional de um ser humano o são. Efectuado que está esse aviso, passemos ao problema.
A constituição dos EUA inclui uma cláusula que proíbe, no seu sistema penal, "castigos cruéis e invulgares". A pena de morte já foi desafiada no Supremo Tribunal com base nessa cláusula, argumentando os abolicionistas que uma pena de morte é necessariamente um castigo cruel. Não foi essa a convicção dos juízes constitucionais, pelo que a pena de morte foi mantida, com a ressalva de que deveria ser levada a cabo de forma "humana", sem sofrimento para o condenado.
Assim, a aplicação da pena depende da correcta aplicação de um método que não possa causar dor ou uma morte prolongada ao condenado. Infelizmente (para quem pretende aplicar as penas, obviamente), o acto de eliminar o semelhante sem dor, não é tão simples quanto possa parecer. Foram experimentados vários métodos:
- pelotão de fuzilamento - observa-se que, no último momento, vários executores não têm coragem de disparar um tiro mortal, pelo que frequentemente o condenado terminava, em grande sofrimento, com vários ferimentos não imediatamente letais.
- enforcamento - ao contrário do que se pensa, um dos métodos mais indolores, quando efectuado correctamente (quando a queda é suficiente para quebrar as vértebras cervicais), mas um processo agonizante quando não corre como esperado e a morte só sobrevem pela lenta asfixia do condenado.
- cadeira eléctrica - tem um "boa" taxa de sucesso mas, infelizmente, já teve alguns casos dramáticos em que a morte só sobreveio ao cabo de várias e dolorosas descargas eléctricas.
- câmara de gás - tem sido descrita como uma das mais dolorosas formas de pena de morte, pela sensação descrita de queimadura profunda que emerge dos pulmões.
- injecção letal - é, de longe, o método mais comum e universalmente considerado o mais humano. Pressupõe a aplicação de um anestésico prévio injectado por via endovenosa, ao qual se segue um cocktail cuja função é provocar uma paragem cardíaca.

O método da injecção letal é o que, de longe, melhor consegue ser vendido junto do grande público. Dá uma imagem de limpeza cirúrgica, de procedimento efectuado com base científica, em condições de pura assepsia.

Infelizmente, para quem estas coisas ainda causam muitos engulhos, o método da injecção letal não é tão limpo quanto possa parecer. Não é porque, para começar, pressupõe a intervenção de um médico anestesista qualificado para efectuar correctamente o processo anestésico. Ora, a American Medical Association, orgão de funções deontológicas algo semelhante à nossa Ordem dos Médicos, proíbe os seus associados de participar em qualquer acto cujo fim último seja o de tirar a vida a um ser humano. É entendimento daquela associação que a bondade de aliviar o sofrimento de alguém que está condenado a morrer não supera a violação do código ético que estaria subjacente à colaboração com uma prática repugnante para um clínico como é retirar a vida a um paciente. Por outras palavras, a AMA não quer servir para aplacar as consciências de quem defende a pena de morte, garantindo que a morte é provocada de forma "humana".

O motivo porque fui buscar o exemplo da pena de morte nos EUA é porque se trata do único país de valores ocidentais que leva rotineiramente a cabo a execução de prisioneiros e onde, desse modo, se pode analisar de forma directa, ainda que brutal, as questões éticas associadas à privação do direito à vida.

Penso que ninguém negará aos médicos norte-americanos, a título individual, o direito a exercerem a sua objecção de consciência relativamente à participação em processos de execução da pena capital. Mas os médicos norte-americanos vão mais longe. Dizem que a sua função, o seu dever, é defender a vida, nunca pôr-lhe fim. Penso que os sectores mais progressistas da nossa sociedade (entre os quais me incluo) e onde normalmente a prática da pena de morte é vista com grande repulsa não deixarão de aprovar esta conduta por parte da AMA, que opta por colocar o seu Juramento de Hipócrates e a sua máxima de "Do no harm" acima de qualquer legislação ou de directivas governamentais.

Saltando agora um salto geográfico e temático para Portugal e para a questão do aborto, de novo a questão da objecção de consciência por parte dos médicos parece estar na ordem do dia. A despenalização do aborto (não a sua descriminalização, note-se) foi aprovada em referendo e, como democrata que me prezo de ser, rendo-me aos resultados desse referendo. Não teve o desfecho que eu gostaria mas penso que questões éticas tão delicadas se resolvem a muito longo prazo, numa sobrevivência darwiniana daquelas culturas que defendem a vida, por oposição àquelas que defendem a morte. Não tenho nenhuns argumentos religiosos contra o aborto, pois há muito que não sei muito bem onde andam os meus valores religiosos. Mas tenho, para mim, que as sociedades competem entre si pela sobrevivência como quaisquer outros seres vivos e que o seu genoma se encontra na sua cultura. Aquelas sociedades que têm um genoma de maior aptidão sobreviverão, as outras seguirão o caminho dos mamutes e dos tigres de dentes de sabre. Parece-me óbvio que a escolha do aborto livre e gratuito não favorece a sobrevivência da sociedade mas posso estar enganado. No final, será a própria história da cultura humana a proferir a sua sentença. Por isso, penso que democraticamente temos de aceitar o resultado do referendo mas não temos de concordar com ele. Sobretudo, não temos de participar nele, se não quisermos.
Aqui, a semelhança com a pena de morte nos EUA é que nenhum médico norte-americano pode pôr em causa a existência da pena de morte, democraticamente imposta pelo povo norte-americano em eleições livres. Já se poderá contestar a proibição de um antagonista da pena de morte figurar num júri de um caso capital mas isso é outro assunto. Agora, o que não se pode negar ao médico é o direito de não figurar entre aqueles que activamente estão envolvidos numa execução. A ética médica proibe-os mesmo de o fazerem e nem mesmo o argumento que reza "sem os médicos, as execuções têm na mesma lugar e quem sofre é o condenado que tem uma execução em piores condições" demove os médicos norte-americanos de se manterem afastados daquelas práticas.
Pela mesma ordem de ideias, os médicos portugueses têm de aceitar, como os demais cidadãos, que o aborto foi despenalizado em Portugal. Não podem, de todo, é ser coagidos a praticá-lo, nem mesmo com o argumento "sem os médicos, o aborto tem na mesma lugar e quem sofre é a mãe, que praticará o aborto em piores condições". Não se pode colocar esse estigma em cima dos médicos objectores como se deles fosse a culpa de alguém ir abortar em condições precárias. Não foram eles que pediram a realização do aborto e, não podendo encaixar a sua realização na sua escala de valores, não podem ser responsabilizados por quais quer consequências que daí advenham.
Para muitos médicos, nomeadamente obstetras, um feto é uma forma de vida. É, de certa forma, um seu paciente, que seguem em consultas de acompanhamento da gravidez, com monitorização cardíaca, exames ecográficos, análises e outras práticas médicas. O seu juramento ético impede-os de provocar o mal aos seus pacientes. Numa consequência lógica, não podem praticar um acto médico que vá prejudicar a saúde do seu paciente. Assim, à semelhança dos EUA, onde o facto de a lei prever a pena de morte não obriga os médicos a tomar parte nela, também no nosso país, o facto de a lei não penalizar agora a prática do aborto não pode obrigar os médicos a praticá-la se, individualmente ou através dos seus orgãos de ética, entenderem que estão a violar os princípios que acreditam orientar a sua profissão.

2 Comments:

Blogger Ka said...

Grande e verdadeira incontinência!

De facto uma das coisas que me irritou imenso neste referendo foi a argumentação completamente enganosa por parte de quem defendeu a liberalização. Senão vejamos que falavam em despenalização do aborto, para que as mulheres coitadinhas tivessem opção...
E eu pergunto, mas as mulheres não têm opção? Então não têm opção de ter uma vida sexual responsável?
Quem não tem opção é uma vida que existe e não pediu para existir. Realmente só neste país completamente demissionário se procura a solucção mais fácil para as irresponsabilidades...o Estado deveria preocupar-se com um bem comum, deveria dar respostas a Todas as mulheres e não a apenas algumas...
Em relação aos médicos, a subversão de ideias é total...obrigemos à força pois temos de ter médicos para que elas possam abortar, diz quem defende a liberalização.
Mas aqui esquecem-se que a liberdade de escolha termina quando começa a liberdade do outro. Isto aplica-se tanto na decisão de fazer um aborto (mata-se uma vida que existe só para ter liberdade de escolha?) como na liberdade de consciência (um médico fez o Juramento de Hipócrates e tem de ter a liberdade de o manter).

Em relação a opções religiosas, se bem que sendo eu católica praticante, nunca defendi a vida por o ser mas sim porque acredito que é um direito fundamental que assiste a Todos os seres humanos (mesmo que ainda não se possam manifestar).

6/25/2007 11:54 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Neste post nada bate certo.
No mínimo, é crassa idiotice.
É impossível comparar a condenação à morte de crimimosos para os quais se chega à conclusão, bem ou mal, de que não há remissão posssível com a matança de inocentes que nem sequer têm uma mais pequena hipótese de saber o que é ver a luz do dia e viver.
Está a fazer-se uma comparação absurda digna de um crâneo vazio de miolos.
É estupidez completa comparar a rejeição dos médicos à prática de actos contra a vida em ambos os casos, embora se justifique, plenamente, em qualquer deles.
Ponto é que, num caso e no outro, o médico tem por obrigação defender a vida.

Nuno

6/26/2007 7:12 da manhã  

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