sábado, maio 05, 2007

Mãos ao ar!


Causou sururu a notícia de que uma senhora de 70 anos estaria a ser julgada por furto. Nada de surpreendente não fosse a coisa furtada ter o módico valor de 3,99 euros. Houve logo quem visse neste julgamento a ausência do Estado de Direito. Uma senhora, coitada, já com alguma idade, coitada, a ter de roubar, coitada, para viver, coitada. Coitada da senhora e coitados de nós, os que vivemos numa sociedade que tolera e paga tamanha prepotência.

É evidente que esta leitura, sendo aparentemente caritativa, é a semente de muitos vícios sociais. O ilícito criminal repousa numa censura eminentemente subjectiva, dirigida a quem pratica, culposamente, um acto que a comunidade entende não dever tolerar. Isto explica a razão por que é rara a existência de fasquias abaixo das quais a censura criminal se não pode fazer. O crime, mais ou menos nitidamente, protege interesses que, sendo assumidos pelo Estado, são de todos e de cada um dos cidadãos. Furtar é crime. E nessa medida, o meu património (e o do meu vizinho), por magro que seja, tem uma tutela especial que, em regra, ninguém questiona. Aqueles interesses que são apenas do Estado (às vezes porém assim impropriamente tidos, como p.ex. sucede com os impostos) já acomodam mais facilmente algumas bitolas quantitativas.
Só se evita a injustiça que uma eventual perseguição criminal como a noticiada sugere, se nós passarmos a entender que o furto de pequeno valor é tolerável. Não é reprovável. Se assim for, a lei deve ser mudada no sentido de se introduzir um limite quantitativo abaixo do qual mora a impunidade. Se assim for, as pessoas passarão a poder às lojas furtar qualquer bem abaixo desse fixado valor, não tendo de recear qualquer repressão. Depois do furto, abrandemos a reacção de outros crimes. Uma facada é horrível, uma estalada talvez não.

Não é com condescendência que se constrói um mundo melhor. Isso é uma ilusão. É com responsabilidade. Acresce que só o processo penal permite distinguir o que tem de ser distinguido.

14 Comments:

Blogger ruialme said...

Concordo com o q aqui é dito e reconheço uma certa histeria da (de alguma) comunicação social. Mas acho q este caso deve remeter para uma reflexão acerca da proporcionalidade e adequação dos actos judiciais.

5/05/2007 7:41 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

"deve remeter para uma reflexão acerca da proporcionalidade e adequação dos actos judiciais"

Concordo absolutamente. A senhora sai do IPO, passa pelo LIDL e rouba um creme de 3,99 euros. Também deve ter lido o mesmo que eu no CM sobre as custas do processo, papelada, pessoal envolvido, etc.
Haja bom senso, valha-me Deus.

5/05/2007 8:06 da tarde  
Blogger José Luís Malaquias said...

Por muito penoso que seja, acho que tenho de concordar com o Nuno Pombo. Um limite mínimo abaixo do qual se poderia roubar impunemente seria um convite ao vale tudo, desde que se siga uma regra simples.
Sendo assim, Misspearls não teria razão quanto à desproporção do custo do processo, pois não estaria em causa um creme de 3,99 euros, mas sim todos os cremes de 3,99 euros ou menos em todas as lojas do país.

Por outro lado, acho que há um factor a considerar, que é o historial do perpetrador. No caso de uma senhora (ou um senhor) que nunca teve um único problema com a lei, penso que o simples susto de ser presente às autoridades, ficar com o nome registado e, eventualmente, pagar uma coima num processo sumário seria um susto mais do que suficiente para não se voltar a meter noutra. No caso de reincidência, então o processo seguiria em frente, com todas as suas consequências, tendo apenas como atenuante penal o valor da mercadoria roubada, para que não se tivesse a mesma pena por um creme roubado ou por um automóvel roubado.

5/06/2007 6:58 da manhã  
Blogger M Isabel G said...

O que eu acho é que se trata de uma verdadeira imbecilidade todo este processo. Só isso.

COmo se a justiça neste país fosse exemplar...
Graças a Deus todos temos ideias. A senhora dos 3,99 (Ó escândalo!) podia ter resolvido o problema logo ali. No supermercado. Certamente apanhou uma enorme vergonha. Há melhor incentivo para não voltar a repetir?

E andar 7 a 8 anos pelos tribunais para resolver casos de acidentes de viação? Ainda por cima quando há mortes ou vítimas sobreviventes?? Não vos vejo indignarem-se contra o que me parece ser um caso de direitos humanos.

Já contra uma velha com reforma de dois dígitos e um roubo de 3,99Euros , todos elaboram doutrinas sofisticadas.

5/06/2007 1:29 da tarde  
Blogger José Luís Malaquias said...

O ponto exposto por Misspearls no seu segundo post é muito pertinente.
De facto, a minha análise foi feita num sistema ideal (utópico?) em que os tribunais funcionam e não estão afundados em processos.
Claro que tenho de aceitar o argumento da prioridade e claro que um caso envolvendo vidas humanas tem de ter sempre prioridade sobre uma questão como um roubo de 3,99.
Agora, volto a frisar que temos de ter cuidado com os sinais que damos. Se, por absurdo, alguém se lembrasse de publicar que qualquer roubo inferior a n euros não seria penalizado, teríamos um colapso do estado de direito e da propriedade quando todos começassem a tentar a sua sorte nas prateleiras dos supermercados. O argumento da vergonha funciona com algumas pessoas (as tais que não têm antecedentes), mas é completamente irrelevante para outras.
Há, infelizmente, pessoas para quem o conceito de vergonha não existe.
Por isso, deixar em branco por sistema um roubo só porque é de pequeno montante poderia causar sérios danos ao tecido social.

Só a título de exemplo, os grafitti nas paredes não são considerados um dano por aí além. Mas a sensação de descuido que criam nas pessoas tem um impacto que é difícil de medir. Rudolph Giuliani, o famoso Mayor de Nova Iorque que conseguiu reduzir drasticamente a criminalidade naquela cidade fê-lo com muitas dessas pequenas medidas pontuais. Onde aparecia um grafitti, ele mandava apagá-lo no mesmo dia. Processava toda a criminalidade, sem excepção. Isso, mais do que pôr ladrões atrás das grades, teve foi o efeito de criar uma consciência cívica entre a população de respeito pela propriedade do próximo.

5/06/2007 4:08 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Pode partir-se do princípio que, se uma volhota surripia uns euritos, é por que não tem dinheiro e vive em dificuldades extremas.
Cabe ao juíz decidir uma pena adequada, e que deve ser aplicada.
Há imensos casos que ocorreram recentemete, aqui, em Inglaterra. Os juíses têm ditado sentenças atendendo a cada situação - afinal, a miséria não é só em Portugal...
Tem que ficar claro, também, que há imensa gente idosa a cometer crimes que não são apenas de furto. Há situações bem piores.

Nuno

5/07/2007 7:29 da manhã  
Blogger Nuno Pombo said...

Caro Zé Luís, é por entender que não podem ser abertas brechas na tutela do Estado a situações como estas, e por entender ainda que seriam perigosos os sinais dados caso essas brechas fossem consentidas, que concordo em absoluto com o que diz.

5/07/2007 7:16 da tarde  
Blogger M Isabel G said...

Somos um país de valentões cheios de "mãos pesadas " para velhotas que gamam um creme no Lidl de 3,99 Euros com direito a uma "defesa" de desgraçada.
Fosse a velha uma ricaça com dinheiro para pagar um advogado caro e a esta hora estava dada como cleptómana ou "traumatizada temporariamente devido a uma doença cancerosa."

5/07/2007 8:18 da tarde  
Blogger José Luís Malaquias said...

Mais uma vez, dou razão a misspearls, mas acho que não invalida o raciocínio anterior.
O facto de a justiça não ser igual para todos e depender do poder económico de cada um, não é razão para não a aplicar.
Mas, de facto, incomoda-me também a desigualdade de acesso à justiça e já tenho pensado nesse problema relativamente a outros casos.
Uma solução criativa seria as pessoas deixarem de poder contratar os seus próprios advogados. Os advogados passariam a ser todos funcionários do Ministério da Justiça, numa carreira paralela à dos seus colegas do ministério público. Sempre que um cidadão tivesse de lidar com o sistema judicial, ser-lhe-ia atribuido por sorteio um advogado do quadro do ministério, pelo qual pagaria eventualmente uma taxa semelhante às taxas moderadoras dos hospitais. Assim, todos, ricos ou pobres, teriam acesso à mesma qualidade de defesa perante a barra do tribunal.
Melhor do que isso, sendo os advogados funcionários do ministério, não seriam tão tentados a quebrar o seu código de ética em favor dos clientes, não incorreriam em tácticas dilatórias e não entrariam em litígio de má fé, pois sabiam que estavam apenas a entupir os tribunais e, consequentemente, a aumentar a sua própria carga de trabalho.

5/08/2007 8:59 da manhã  
Blogger Nuno Pombo said...

Cara Isabel,
Permito-me contrariar a sua versão judiciária da "luta de classes". Só o processo penal e um juiz pode averiguar quem é rico e quem é pobre, quem sofre de traumas, fobias e manias. Sem prejuízo de podermos ensaiar as mais diversas reflexões sobre o estado da justiça e dos remédios que podem ser prescritos, os princípios que importa sublinhar são estes: ninguém (velho ou novo, pobre ou rico, doente ou com saúde)pode eximir-se à responsabilidade dos seus actos; essa responsabilidade é individual, subjectiva, pelo que tem de ser formulado um juízo de culpabilidade sobre a conduta de cada eventual responsável; esse juízo dificilmente será concebido à margem do processo penal, com todas as garantias que encerra (ou devia encerrar); não deve conceber-se um sistema que, por incapacidade, converta em bagatela o que manifestamente não é. Seria mais barato não ter tribunais? Acho que sim. Viveríamos então num país melhor? Acho que não!

5/08/2007 9:20 da manhã  
Blogger M Isabel G said...

Não sei de nada disso.
A minha mãe morreu num acidente de viação e estou há seis anos à espera de justiça e quem me pague o funeral dela .
E farta de me arrastar inutilmente para o tribunal a 250 quilómetros.
Essa milagrosa justiça vence-nos. Principalmente pela exaustão.
O resto, caro Nuno,são balelas e cantigas que não servem sequer para eu adormecer. Pelo contrário, além do profundo desgosto, é isso que me tira o sono.

Dou-lhe dezenas de casos destes.

5/08/2007 4:15 da tarde  
Blogger Nuno Pombo said...

Cara Isabel, infelizmente conheço vários casos tão ou mais gritantes do que esses. Mas esta milagrosa justiça, essa que nos vence, tem de ser melhorada e não extinta.

5/08/2007 7:29 da tarde  
Blogger José Luís Malaquias said...

Com muito pesar pela sua dor, Isabel, tenho de concordar com o Nuno. É por se começar a fechar os olhos às pequenas coisas que se cria o sentimento de impunidade. E é esse sentimento de impunidade que depois faz com que em causas mais importantes como a que nos relata nos deixem na boca o sabor amargo da injustiça.
Por isso, só posso concordar que a justiça tem de ser melhorada e não extinta, porque quando ela funcionar o seu simples efeito dissuasor fará com que, na maior parte dos casos, não seja precisa.

5/08/2007 8:57 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

No geral, concordo com o post do Nuno. Não devem existir fasquias abaixo das quais a censura criminal não se possa fazer. Mas deve haver coerência na aplicação da Justiça para que não seja o Estado a fomentar o desrespeito pela Lei e pelos outros.

Julgar uma septuagenária pelo furto de um artigo no valor de 3,99 euros (tanto quanto julgo saber, a loja desistiu da queixa) não promove nenhum valor quando os tribunais decidem pela prescrição ao fim de 5 anos de um caso de desvio de 55 mil euros do Fundo Social Europeu ou pela não punição de um condutor apanhado em flagrante a conduzir muito acima dos limites fixados pela Lei com o argumento de que a viatura da GNR que o apanhou também circulava com velocidade excessiva.

Todos os casos devem ser julgados e todos os crimes devem ser punidos mas julgar furtos de valor ridículo ao mesmo tempo que se libertam os culpados (confessos) por crimes muitíssimo mais graves é em si mesmo um crime. Contra todos nós.

5/09/2007 3:00 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home

BlogBlogs.Com.Br