sexta-feira, abril 04, 2008

TEMPOS DE INCERTEZA

Desafio quem se interessa pelo tema Igreja-Estado a reflectir sobre a crónica de Constança Cunha e Sá, publicada no Público de ontem.
«A reeleição do arcebispo de Braga, D. Jorge Ortiga, como presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) foi, se se quiser, a gota de água. Usando uma terminologia que se costuma aplicar ao Partido Comunista, o Diário de Notícias garantia, no dia seguinte, que a manutenção no mesmo cargo do "bispo que mais tem afrontado o Governo, nos últimos anos" confirmava a vitória da "linha dura" da hierarquia católica. Como seria de esperar, D. Jorge Ortiga correspondeu adequadamente a este tipo de expectativas: afirmou que "o Estado democrático não pode ser militantemente ateu"; referiu a "inaceitável exclusão da presença católica dos ambientes públicos e políticos"; exortou os católicos "a encetar acções tendentes a mostrar que nunca irão abdicar dos seus princípios"; e, como se tudo isto não bastasse, ainda se deu ao luxo de invocar a implantação da República "para reconhecer que os acontecimentos adversos suscitaram coerência e fidelidade". É verdade que D. Jorge Ortiga afirmou também que a presença católica não se deve impor "pela lógica dos comportamentos agressivos ou da ambição dos princípios mas pela diferença do amor", acrescentando que a Igreja "deve estar onde o humano acontece".
Infelizmente, estes meandros da teologia interessam pouco aos "laicos de serviço", sempre prontos a denunciar a ingerência da Igreja e a defender a natureza inviolável do Estado. Esta separação radical, determinada pelo espírito do tempo, deixa ao Estado o monopólio do espaço público, remetendo a Igreja para o domínio privado, no qual a sua intervenção se limita a proclamações doutrinais que se dirigem apenas ao conjunto dos seus fiéis. Esta lógica que coloca a Igreja numa redoma, isolada da sociedade e do homem, ignora a aspiração "universal" de qualquer religião e a natureza pública do seu testemunho. Não por acaso, essas declarações doutrinais que supostamente só dizem respeito aos católicos são abundantemente comentadas - e ainda bem - por todos os que, embora não fazendo parte da Igreja, se sentem na obrigação de as analisar. Basta lembrar as inúmeras polémicas que acompanham invariavelmente as posições do Vaticano sobre determinadas matérias como a homossexualidade, o uso de métodos anticoncepcionais, o casamento dos padres ou o acesso das mulheres ao sacerdócio, para referir apenas as mais recorrentes. O interesse suscitado por estas questões mostra, ad contrarium, que mesmo os seus críticos mais contundentes dificilmente conseguem admitir que a actuação da Igreja se insere numa esfera meramente privada com a qual nada têm a ver. Em contrapartida, o facto de D. Jorge Ortiga ter dito que o "Estado democrático não podia ser militantemente ateu" (o que é razoável) ou ter considerado "inaceitável" a "exclusão da presença católica dos ambientes públicos e políticos" (o que se compreende) provocou, entre nós, como já é habitual, um ensurdecedor alarido. Aí estava a Igreja, mais uma vez, a "afrontar" o Governo. A exigir, mais uma vez, privilégios que fazem parte do passado. E a imiscuir-se, mais uma vez, onde não era chamada. Pelo meio, houve inevitavelmente quem lamentasse esta indesejável colagem à Igreja espanhola e à sua indecorosa oposição ao Governo de Zapatero. Mas o mundo, como se devia saber, não se esgota na Península Ibérica.Nos últimos tempos, a chamada "ofensiva" da religião já não se refere, apenas, ao florescimento de uma vaga espiritualidade que, há uns anos, se reflectia no sucesso de algumas seitas ou na importação de um orientalismo de trazer por casa, embrulhado no aperfeiçoamento pessoal e numa gama de "receitas" que levavam à "felicidade". Ao fracasso das ideologias e ao clima de insegurança juntou-se o "fundamentalismo" islâmico, que impôs ao mundo desenvolvido e às sociedades de bem-estar o "retrocesso" da religião. A sharia que o Ocidente tolera, ao ponto de o arcebispo de Cantuária pretender integrá-la na lei britânica, não deixou de abrir um caminho favorável ao regresso da religião numa Europa laica e desenvolvida. Num livro, publicado em Portugal, no ano de 1994, sob o título A Igreja e a Nova Europa, o então cardeal Ratzinger, recusando uma análise "simplista" sobre esta matéria, não deixava de concluir o seguinte: "O islão, seguro de si, exerce sobre o Terceiro Mundo um fascínio muito mais forte do que o cristianismo, a que falta paz interior." Dois anos mais tarde, na Universidade de Ratisbona, o mesmo Ratzinger, já como Papa Bento XVI, exortava as religiões do Livro a ocuparem o espaço deixado vazio pelas ideologias modernas e a tirarem partido destes tempos de incerteza e de mudança para regressarem ao centro da vida política - o que foi interpretado como uma legitimação da "cruzada" da Igreja espanhola contra o Governo de Zapatero. A mudança, no entanto, não se fez sentir apenas em Espanha. Em Itália, a Igreja deixou cair o primeiro-ministro Romano Prodi. Na Áustria, o arcebispo de Viena, num artigo publicado do New York Times, decidiu repescar o direito natural de inspiração divina por oposição às leis "demasiado" humanas que são aprovadas num Parlamento. E, por último, em França, no berço do Estado laico e republicano, o presidente Sarkozy surgiu como um baluarte da religião, defendendo as suas virtudes cívicas, ao mesmo tempo que afirmava que a moral laica se pode esgotar quando não é apoiada numa esperança que realiza as "aspirações do homem ao infinito". Pode-se dizer que tudo isto não é mais do que um fenómeno passageiro - principalmente se levarmos em linha de conta o divórcio que existe entre as exigências da religião e o modo de vida europeu. Como se pode dizer também que existe uma incompatibilidade de fundo entre o pluralismo da democracia e a Verdade única que emana de Deus. Mas não deixa de ser sintomático que este tempo de incerteza aliado a um laicismo exacerbado possa pôr em causa uma das principais conquistas do mundo ocidental.»
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