O falanstério da dourada perdida - Capítulo II, 5.ª parte

- Pronto, Doroteia, já chega! Já me fizeste essa pergunta, pelo menos, umas seis vezes desde que aqui cheguei. Deixa-me responder. E, de preferência, olha para mim enquanto o faço. É o gato que te perturba? Está mais cego e louco desde a última vez que o vi. Chama-se Hong-Kong, não é?

- Macau ...

- Macau?

- Macau.

- Macau?

- Mau …

- Mao?!

- Mau!

- Mau-mau? Mas esse gato é chinês ou queniano?!

- Pela última vez, o nome dele é MACAU!

- Não sabia que D. Jerónimo era do PS…

- Como?

- Nada, nada. Deixemo-nos de chinesices. Queres mesmo saber o que faço aqui ou vamos continuar a brincar às palavras cruzadas do IPA?

- “Vá” com quatro letras?

- Desculpa?

- S-i-g-a!

- Ah! Está bem. Pois aqui vai. Lembras-te quando chegaram os meus exames médicos?

- Como poderei esquecer? Aqueles que diziam que tinhas “rins de dimensões dentro de valores considerados normais, de contornos regulares, com cortical de espessura mantida, evidenciando ambos imagens sugestivas de microlitíase, mas sem ectasia calicial associada” e que foram deixados em minha casa por engano?

- Ainda te lembras … esses mesmos. Depois de mos teres ido entregar, a minha vida nunca mais foi a mesma…

- Nem a minha. Apaixonei-me terrivelmente por ti. E, por causa disso, venho sofrendo todos os dias.

- Eu não amei nem sofri menos, garanto-te.

- Talvez. Mas fui eu que fiquei aqui todos estes anos sem saber para onde tinhas ido; sem saber porque tinhas partido; amortalhada em vida.

- Não tive alternativa. Fugi para te proteger. O Partido não me perdoaria se casasse, sobretudo com a fidalga dos Novelões, e não te estou a ver simples companheira do camarada Bernardo Carrapiço.

- Quem te mandou decidir pelos dois?! Quem te mandatou para escolheres o meu caminho?! Como te atreveste a fazê-lo?

- Ameaçaram matar-te e ao teu Pai, não compreendes?! Quiseram ocupar os Novelões. Queriam fazer disto uma UCP! Tive que prometer que me afastaria de ti. E disseram que nunca acabaria o curso! Sabes bem como sempre quis ser sociólogo…

- Explica-me uma coisa, porquê “Carrapiço”?

- Bernardo Carrapiço era o meu nome na clandestinidade…

- Deixa-me rir! Achas que basta mudar de apelido para que o filho mais velho do Marquês de Barcarena adopte os modos da ralé?

- Marquês de Barcarena… Há muito tempo que não ouvia esse nome. Que é feito de meu Pai? Ainda é vivo?

- Sim, vive ainda. Desgostoso e frágil como tanto teria agradado ao meu Pai que não lhe sobreviveu para rejubilar com isso. Pensei que a tua partida acalmasse a rivalidade entre ambos, mas não. Meu Pai prometeu soltar-te os cães se aqui voltasses. Ele ainda pára e paira por aqui. Não me espantaria que o encontrasses. O teu Pai jurou não morrer até voltar a ver-te. Já lhe chamam o “Marquêsalém”. Tens que o ir ver. Não o prives dessa felicidade!

- Tenho medo, Doroteia. E vergonha. Muita. Devia ter percebido que tudo aquilo era fogo de palha. Devia ter tido coragem de enfrentar o meu controleiro e os nossos Pais. Tanto a Guerra Civil como a Revolução de Outubro já lá vão! Nunca me deveria ter alistado na Legião Estrangeira.

- Legião Estrangeira? É lá que tens estado?!

- Sim.

- Julgava eu que essa cor se devia a teres ido pregar a revolução para os trópicos… imaginei-te em Angola com os cubanos.

- Não. Estive no Chade. Na República Centro-Africana. No Líbano. No Koweit. No Iraque. No Cambodja. Na Bósnia. Nos Congos. Na Macedónia... Sempre ao serviço da República Francesa. Capitaine Bernard Carapis, 1er régiment étranger de cavalerie.

- Oh, mon Dieu!

- Que algazarra vem a ser esta?! Quem é este rapaz e que faz ele aqui?

- António, não me reconheces? Sou eu, o Bernardo!

- Bernardo? O Bernardo Barcarena?!

- O próprio.

- Não sei se te abrace se te dê um tiro pelo estado em que deixaste minha irmã!

- Sugiro que comeces pelo abraço, que para o tiro temos tempo. Amanhã é a abertura, não é?

- Das rolas, sim.

Isílio Verdasca