quinta-feira, março 06, 2008

A Sintra do Mistério da Entrada - Capítulo I, 2.ª parte


Uma osga! Era uma osga. Bichinho desagradável mas inofensivo que deambulava indolentemente entre as lombadas gastas do Amor de Perdição e d'A Queda de um Anjo que tinham feito as delícias de várias gerações naquela casa. Em particular de D. Jerónimo, que herdara a afeição pelo universo camiliano de seu tio, o Senhor D. Augusto, o qual privara na juventude com o génio atormentado de S. Miguel de Seide.

Aquelas e muitas outras obras, entre as quais algumas primeiras edições assinadas pelo próprio Camilo, espraiavam-se por metros empoeirados de prateleiras escuras, entrecortadas por paisagens irreais executadas por artistas menores e retratos de avoengos hirtos e hirsutos que já ninguém identificava. Os livros, as cadeiras de espaldar alto em pau-santo e couro negro, os reposteiros puídos e pesados, as paredes velhas e gretadas e as teias de aranha - que nem toda a persistência de Alice e de Genoveva conseguiam remover em absoluto - conferiam àquele lugar a calma amarelenta dos cenários tristes. Como se de um filtro se tratasse, deixando lá fora o mundo e o seu frenesim, todos nos Novelões viviam imersos nas águas tépidas de uma intemporalidade alquebrada e decadente mas nem por isso menos eterna...

Depois do guincho ameninado de Genoveva que, por breves instantes, sacudira a sepulcral quietude do lugar, tudo se recompusera. O silêncio reinava novamente em toda a casa. Até a Maria da cozinha, normalmente gaiata e cantaroleira, mexia a sopa de couve e feijão com funérea mudez. Não era para menos.

Doroteia parecia planar. Vértice de dignidade senhoril, ebúrnea e rósea como só o eram os arquétipos da mais sublime beleza renascentista, afastara-se por momentos do seu torvelinho interior para orientar a criadita recém-chegada, manifestamente ainda pouco à-vontade com o serviço.

- Cautela, rapariga, que ainda partes esse jarrão! disse a Genoveva no tom sereno e modelado que quase nunca a abandonava, sem que verdadeiramente se importasse com o destino daquela peça tosca e hedionda que, ainda assim, ganhara direito inalienável a estar ali pelo mero facto de sempre ali ter estado.

Isílio Verdasca

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Caríssimo Isílio Verdasca,

Acabo de degustar a segunda parte deste doce manjar. Muito obrigada por esta delícia, este pedaço de doçura e beleza - a beleza serena dos textos claros, límpidos, de uma simplicidade sublime. Comovi-me. Obrigada.

Sua,

Suzete de O. Sarrabulho

3/06/2008 3:25 da tarde  

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