quinta-feira, março 06, 2008

O Mistério das Entradas do Cintra - Capítulo I, 3.ª parte



Doroteia sabia-se, por mais que o procurasse ocultar perante os rostos inquisitivos e voyeurs da criadagem, à beira de um dos seus recorrentes e prolongados ataques de alucinações. Os acontecimentos dos últimos dias mais não haviam senão desencadeado o seu estado de agitação febril, prelúdio da sua paixão irreal.

E que alucinações! Projectava-se-lhe em geral a mente sobre acontecimentos e figuras do século XXI, acontecimentos e figuras, a princípio totalmente estranhos e desconhecidos; agora, ao fim de dezenas destes surtos tormentosos, já familiares, como familiares nos são os joanetes aos membros inferiores.

Não que não sofresse bastos contratempos no seu deambular por estas regiões do sonho em que acordava da sua penosa realidade. Era frequente, por exemplo, confundir uma Philishave com um secador de cabelo de viagem e, com isso, emaranharem-se-lhe dolorosamente os fúlvidos cabelos nas lâminas circulares, como rede de pesca enrodilhada na hélice de uma traineira.

De outras vezes, cravavam-se-lhe os olhos no céu - sempre, sempre um céu plúmbeo onde se recortavam claramente as figuras que lhe povoavam o imaginário. E essas figuras eram invariavelmente um número indefinido de camelos, numa referência óbvia à sigla LSD – ou não. Qual o seu significado, ou o da sigla, situava-se muito para além da sua compreensão. Mas apreciava nessas figuras animais uma sabedoria oculta que de algum modo a inspirava.

Doroteia, pese embora o seu temor e resistência iniciais a prescindir da sua natureza voluntariosa para transpor o limiar deste mundo de sombras e cores feéricas, cedo via nele alternativa apetecível à dura monotonia da sua vida corrente na Casa dos Novelões, monotonia apenas interrompida por acontecimentos dramáticos como os daqueles dias. Encontrava aqui refrigério para a sua solidão, esquecida de tudo, esquecida de todos, ignorando Maria, Genoveva e Joaquim que a fitavam perplexos, comparecendo submissa e de bom grado perante estas forças oníricas que a envolviam num amplexo sensual que tanto a poderia conduzir a um festim de prazeres inauditos, como à decadência inexorável de si.

Isílio Verdasca

2 Comments:

Blogger Isa said...

cheguei aqui via rui castro@31 e tou a adorar!

3/07/2008 1:00 da tarde  
Blogger INCONTINENTE said...

Obrigado, caro(a) leitor(a). Oxalá assim permaneça!

3/07/2008 3:16 da tarde  

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