terça-feira, março 11, 2008

O Ministério das Estradas do Centro - Capítulo I, 6.ª parte




Genoveva correu desarvorada para a sala de onde retinira metálico o sacrossanto objecto. Entrou de rompante e, mais repentinamente ainda, estacou, largando um grito estridente capaz de despertar os mortos do seu torpor, impedindo-os de pregar olho o resto da Eternidade. E mal esvaziara a caixa torácica, logo ali caiu, redonda, sem dar fé de si, inanimadinha de todo.
Momentos depois, juntava-se-lhe a ama, Doroteia e, quase ao mesmo tempo, Alice, lívida de susto do grito que penetrara todas as divisões da casa, como pé-de-cabra que rompe as entranhas do cofre mais inviolável.
– Vai buscar os sais de cheiro, Alice, a ver se ela dá acordo de si! – ordenou Doroteia.
Ainda não emitira a ordem, quando a criada regressou, de frasco já aberto, encostando-o, sem esperar pela ordem da patroa, às narinas de Genoveva. Esta voltou a si de imediato e fitou todos em sua volta com um esgar de horror.
– Que tens tu, mulher, que parece que viste uma assombração!? - invectivou-a Doroteia.
– Mas se é que vi mesmo, senhora D. Doroteia! Com estes, que a terra há-de comer! – gritou, desabrida, apontando as órbitas com os dedos em V.
– Já te disse que para ti sou Senhora Dona Dorot… ah, esquece! Desembucha mas é lá, rapariga! Que viste tu na sala que te pôs nesse estado? E quem tocou a campainha, e como se atreveu?
– Ai minha rica senhora! A campainha da Senhora D. Maria Pia vi-a nas mãos dum senhor anafado, bem-posto, de ar bonacheirão, mas que se adivinhava capaz de iras súbitas, de longas barbas alvas e fartas, como se de algodão fossem feitas… vestia uma casaca impecável, colarinhos engomados, e do bolso do colete pendia-lhe um fio de ouro que terminava num relógio Baume & Mercier. Usava monóculo, e os seus olhos eram dum azul límpido, como o fundo de um mar de coral em dia de bonança. O queixo recto fazia suspeitar de um carácter decidido, da cepa dos velhos aristocratas que…
Doroteia interrompeu-a:
– Oh, mulher, que descrição tão pormenorizada fazes da tua aparição, com que dotes literários a descreves… E donde te é dado dares provas de tamanha eloquência e loquacidade?
Doroteia afirmou-se então num homenzinho da porte distinto, fato preto, completo, olhos de um azul profundo, tom de voz calmo e pausado, modos que inspiravam confiança, e toda uma postura que denunciava estarmos em presença de um grande banqueiro. Esvoaçava junto ao ouvido de Genoveva.
– Ah – fez Doroteia – , já percebi, tiveste um Espírito-Santo-de-Orelha.
– Ai, minha senhora, ainda não percebeu?! Acabei de lhe descrever o seu falecido paizinho, que Deus tenha!
– O meu pai?! D. Jerónimo? Oh mulher, pois tu ensandeceste? Não sabes que meu Pai faleceu? E como mo descreves com tamanha exactidão, se Deus já o levara quando vieste para aqui servir?
– Faleceu, sei-o bem, e não sei porquê, se não o conheci nunca, por que prodígio o reconheci e descrevi com tamanho pormenor! – Ricardo Salgado continuava a soprar as suas tiradas romanescas ao ouvido de Genoveva. – Mas era bem ele, foi bem a ele que reconheci. E naquele breve instante em que o fluir do tempo se condensou numa singularidade, vi-o dirigir-se-me, de campainha na mão, através do móvel grande de mogno. Digo bem, através. Atravessando-o como a faca a manteiga, a quilha a torrente, o cão a vinha vindimada, o cego a passadeira, Moisés o Mar Vermelho… – O banqueiro estava visivelmente entusiasmado.
– Chega de tiradas metafóricas, mulher! Atravessando-o? Mas então meu Pai era…
– Um fantasma, minha senhora! O Senhor D. Jerónimo era um fantasma!
Isílio Verdasca
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