quinta-feira, março 13, 2008

O Ministério das Entranhas de Baixo - Capítulo II, 1.ª parte


Ninguém conseguia precisar, com aquela exactidão que comove os físicos, quando é que a Casa dos Novelões entrara na família de Doroteia. Nem sequer como havia nela entrado. Corria à boca pequena que a fortuna familiar era anterior à posse de uma das mais importantes e tradicionais Casas do Reino e que essa apropriação cobrira de lustre uma linhagem de poucos costados conhecidos. Sabia-se que ali, ainda no século XVI, os Senhores do lugar haviam conspirado activamente para que o Rei Filipe visse o seu domínio peninsular encolhido, frustrando-se a intriga quando os fiéis Grandes de Portugal se aperceberam de que o objectivo era, afinal, coroar um jovem mas opulento vizir maometano. Como podiam fiéis de Portugal patrocinar a iniciativa de pôr a cristianíssima coroa lusitana no toutiço de um infiel, cuja pretensa descendência régia era imputada, ainda por cima, mas talvez mais plausivelmente, não ao raçudo Sebastião que pisara as areias de Marrocos, mas ao purpurado Henrique?
Claro que não terá favorecido a conjura o facto de ter constado que o dito sultão estava já, ainda no viço da sua tenra idade, assustadoramente cravejado de providências cautelares que, de certo, depauperariam o mais faraónico dos erários. Acresce que o putativo herdeiro não só carregava uma graça indizível, o que logo suscitou a firme oposição do representante do poderoso grémio dos cronistas-mores, como se assumia, lhanamente, polígamo. A esta distância, talvez tivesse sido este o obstáculo mais inultrapassável. Os clérigos dissecavam os fundamentos teológicos que rechaçavam tamanha aberração, mas logo eram silenciados quando ensaiavam dirigir a prédica para os méritos paulistas da abstinência. Os juristas, sempre parcos nas palavras que não podem trocar por espécies amoedadas, entretinham-se a expor breves nótulas sobre a problematização dos termos de uma eventual compaginação de semelhante construção familiar, em si estranha às glosas de Acúrsio ou aos comentários de Bártolo, com a indissolubilidade dos matrimónios canónicos, ratos e consumados. Mais prosaicamente, um nobre de Bestaigueiros havia logrado captar a compreensão de todos quando assinalou com pertinácia o inconveniente de ter um real mancebo a lançar voluptuosa vista régia para as esposas de cada um dos presentes ou, pior ainda, para as suas, delas, castas damas de companhia. A volúpia do Oriente, dizia-se, era como o vinho: alegra o coração do Homem mas não desagrada às mulheres, o que é muito dizer. Só um dos conspiradores, justamente o anfitrião, não via com maus olhos a importação de um dos mais afamados haréns da Maometâmia, ante a possibilidade de mordiscar uma ou outra odalisca que se quisesse deixar apanhar, enquanto o real senhor se enfadasse na espinhosa tarefa de conduzir a quadriga dos desembestados interesses do Reino. O certo é que a trama não parira fruto palpável, mas afagara os ânimos anti-filipistas, de que os Braganças seriam beneficiários, ao mesmo passo que granjeara aos Senhores dos Novelões justa fama de oportunistas, só temporariamente interrompida pelo infortúnio de um deles que, no século XVIII, no reinado do Magnânimo, sucumbira asfixiado, engasgado com um inoportuníssimo naco de carne assada que se acomodara com incómoda perfeição nas goelas da vítima, contando-se, com a malícia dos petizes, que nem os cães, depois de regorgitada a vianda, já que o coveiro achara de menos dar sepultura a um embuchado, ousaram tragar. O naco, entenda-se. Enfim, um azar azarento mesmo, do mais improvável que possa conceber-se, e que se vulgarizou como o azar do Novelões. Pelo menos até que a concupiscência dos Marqueses de Távora, ávidos de tudo quanto lhes não pertencesse, o rebaptizou com o nome da martirizada família, sendo o único património verdadeiramente seu que chegou aos nossos dias. O único que o Marquês por antonomásia não conseguiu picar, queimar, salgar ou varrer da nossa memória. Honra lhes seja: o azar, sem mais, ficou sendo sempre deles.


Isílio Verdasca

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Fabuloso. Espero que estejam a compilar para futura publicação em papel. Serei leitor atento.
Cumprimentos ao(s) autor(es)
João Dias da Silva

3/14/2008 3:54 da tarde  

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